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COMO A CORRUPÇÃO TRAVA A COBERTURA UNIVERSAL DOS SERVIÇOS DE SAÚDE
20/04/2018

Para muitas pessoas, pagar para ter uma consulta médica, obter medicamentos, procurar aconselhamento sobre planeamento familiar ou, inclusivamente, obter vacinas contra doenças comuns é uma escolha entre permanecerem saudáveis ou evitarem a pobreza.

Metade do planeta não tem acesso aos serviços de saúde essenciais. Para muitas pessoas, pagar para ter uma consulta médica, obter medicamentos, procurar aconselhamento sobre planeamento familiar ou, inclusivamente, obter vacinas contra doenças comuns é uma escolha entre permanecerem saudáveis ou evitarem a pobreza. E hoje, mais do que nunca, um inimigo bem conhecido está a degradar as opções, em matéria de cuidados de saúde, que estão ao alcance dos mais pobres.

Em muitos países de baixos e médios rendimentos, a corrupção, os gastos inadequados e o desperdício de recursos colocam desafios constantes aos sistemas de cuidados de saúde. Cresci no Paquistão e testemunhei os extremos a que chegam as pessoas para terem acesso aos cuidados de saúde, como o caso de famílias que se viam obrigadas a vender o gado e outros bens valiosos para poderem pagar contas médicas exorbitantes.

O que mais choca é que o flagelo da pobreza relacionada com a saúde continua a fazer vítimas. Com efeito, nalguns países há pessoas a mergulharem diariamente em situações de pobreza devido ao elevado custo dos cuidados de saúde.

Numa recente viagem a África, ouvi uma história perturbadora sobre um hospital onde as mulheres e os seus bebés recém-nascidos são muitas vezes ali mantidas reféns – frequentemente durante meses – até que as suas famílias consigam reunir o dinheiro necessário para pagarem as suas contas.

Segundo investigadores da Universidade da Califórnia, em San Diego, a corrupção, o desperdício e as cobranças indevidas custam aos pacientes e aos sistemas de saúde milhares de milhões de dólares por ano. Nos Estados Unidos, cerca de 10% dos gastos públicos em cuidados de saúde são desperdiçados devido à facturação fraudulenta e dezenas de milhões de pessoas enfrentam barreiras económicas significativas no acesso aos cuidados de saúde.

Claramente, a melhoria dos resultados em termos sanitário é algo que exige um maior gasto público e a erradicação das práticas duvidosas que despojam o sistema de saúde de recursos cruciais. Mas como?

Em todo o mundo, a corrupção e o conluio estão institucionalizados em muitos sistemas de prestação de cuidados de saúde. Calcula-se que, dos 6,5 biliões de dólares gastos anualmente em cuidados de saúde, cerca de 455 mil milhões são perdidos, indevidamente usados ou usurpados. Em suma, os custos com a saúde estão a arruinar algumas das pessoas mais pobres do planeta porque muitas das mais abastadas estão a encher os bolsos.

Há um consenso crescente quanto ao facto de os cuidados de saúde economicamente acessíveis e de qualidade serem um direito humano básico. Os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas incluem a cobertura universal de saúde entre as suas metas. E não foram apenas os países ricos que adoptaram este objectivo: países com sistemas sanitários mistos e recursos limitados, como a Tailândia, Costa Rica ou Ruanda, consagraram fundos e capital político para tornarem a saúde universal uma realidade.
Estão a ser tomadas medidas no sentido de ajudar estes países a serem bem sucedidos. No ano passado, o Japão disponibilizou 2,9 mil milhões de dólares para ajudar os países em desenvolvimento a alcançarem a cobertura universal de saúde. E o Banco Mundial indicou que a capacidade de um país obter um empréstimo junto da organização poderá vir a estar vinculada aos seu nível de investimento em capital humano, incluindo a despesa com a saúde.

Mas estes gestos, se bem que louváveis – e tardios –, não serão suficientes para eliminarem as barreiras aos serviços de saúde de qualidade. Enquanto a corrupção, a usurpação e os gastos ineficientes não tiverem uma resposta mais vigorosa, a cobertura universal de saúde continuará a ser apenas um desejo.

Felizmente, os governos estão cada vez mais empenhados na resolução da crise da corrupção. A evasão fiscal e a fraude – ambos delitos comuns – estão a ser alvo de uma fiscalização mais estreita por parte dos organismos públicos de controlo. A evasão fiscal não só permite a lavagem de dinheiro como também retira ao sector público recursos importantes. Esta é uma das razões pelas quais a ONU designou a redução dos fluxos financeiros ilícitos como uma componente-chave para a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável.

Com o amplo consenso quanto à necessidade de combater a corrupção no sector da saúde, o desafio mais duro será elaborar soluções viáveis. Os ministérios da Economia e das Finanças nacionais, bem como as agências anti-corrupção, precisam de intensificar os seus esforços no sentido de cooperarem na prevenção, identificação e fiscalização. A melhoria da transparência no sistema financeiro também poderá ajudar a reduzir a corrupção, ao mesmo tempo que os grupos da sociedade civil, jornalistas e doentes devem exigir uma maior responsabilização por parte dos governos e dos prestadores de serviços médicos.

No futuro, as novas tecnologias, como a mineração de dados, a inteligência artificial e a blockchain*, poderão proporcionar novas formas de detectar irregularidades no sector da saúde, pelo que estas e outras ferramentas deverão ser analisadas a fundo.

A ampliação do acesso aos cuidados de saúde e a protecção das finanças do sector são dois desafios que a comunidade internacional deve encarar em conjunto. É imperioso actuar sem demora. A incidência de doenças não transmissíveis, como o cancro, a diabetes e as doenças cardiovasculares, está a crescer de forma quase exponencial, e a falta de acesso cuidados de saúde de qualidade contribuirá para agravar os actuais problemas de muitos países em matéria de governança.

Os estrategas da área do desenvolvimento sabem que a saúde precária é a antecâmara da pobreza e um obstáculo à sua erradicação. Actualmente, cerca de 800 milhões de pessoas gastam pelo menos 10% dos seus orçamentos familiares em saúde, tendo muitas vezes que se endividar para financiarem os tratamentos de que precisam. O facto de tantas pessoas não poderem pagar uma consulta médica é verdadeiramente vergonhoso. O mundo precisa de uma cobertura universal de saúde; contudo, para lá se chegar, também o sector da saúde deve ser submetido a um tratamento a nível mundial.

Sania Nishtar é co-presidente da Comissão Independente de Alto Nível para as Doenças Não Transmissíveis, da Organização Mundial da Saúde, bem como fundadora e presidente da Heartfile. Foi ministra federal do Paquistão. Siga-a no Twitter em @SaniaNishtar.


Fonte: Jornal de Negócios (Portugal)