Pacientes com câncer conseguem de graça remédios que não existem no país
18/07/2016
O mais difícil, o potiguar Roberto Medeiros, de 42 anos, havia conseguido. Depois de quase dois meses de espera, o medicamento importado, sua última esperança contra um câncer de pulmão, chegara ao hospital em que ele estava internado, em Natal. Medeiros pegou o comprimido rosado e o levou à boca, seguido de um copo com água. Nos meses anteriores, os tratamentos haviam sido inócuos e os tumores aumentaram a ponto de dificultar sua respiração. Uma máscara de oxigênio ajudava a suprir o ar que faltava. Mas foi à emoção, e não à dificuldade de respirar, que Medeiros atribui o engasgo na hora de engolir o comprimido. Ficou na dúvida se o danado escapulira. No quarto, sua mulher, Ana Paula, a mãe, a irmã e o cunhado, que assistiam à cena, lançaram-se ao chão. Foram minutos de inspeção minuciosa, até Medeiros certificar-se de que o medicamento estava onde deveria: a caminho de destruir as células do tumor que começara no pulmão três anos antes, atingira o cérebro e se espalhara para os ossos. “Imagina desperdiçar um dia de remédio?”, diz o administrador de fala mansa, típica de quem se deu conta da brevidade da vida e aprendeu a valorizar cada momento. Desde que foi diagnosticado com um tipo de câncer que costuma afetar jovens que nunca fumaram, como ele, seu maior desejo é ver crescer os filhos, um menino de 8 anos e uma menina de 6. “Sempre pedi força e coragem para conviver mais tempo com os meus filhos.”
O comprimido rosado é tão valioso porque Medeiros sabe que suas opções estão se esgotando. Ele percorreu um roteiro comum a pacientes com câncer: cirurgia para extirpar o tumor inicial, sessões de quimioterapia e radioterapia. Por algum tempo, bastou para retardar a doença. Quando os tumores se espalharam pelos ossos sem dar sinal de responder às drogas tradicionais, Medeiros chegou a tentar um novo tipo de tratamento, considerado uma das armas mais promissoras contra o câncer, a imunoterapia. Esse tipo de droga deixa o tumor mais vulnerável à ação das defesas do organismo. Era vendido nos Estados Unidos, e não no Brasil. Um funcionário da empresa da família de Medeiros viajou para buscar o medicamento. Foram US$ 15 mil, posteriormente reembolsados pelo plano de saúde, acionado na Justiça pela família de Medeiros. Um mês e meio de tratamento. Nenhum resultado. Diante do fracasso, o médico de Medeiros adotou o último recurso naquele momento: o comprimido rosado, uma droga que não estava à venda.
NOVA CHANCE
O comprimido rosado é tão valioso porque Medeiros sabe que suas opções estão se esgotando. Ele percorreu um roteiro comum a pacientes com câncer: cirurgia para extirpar o tumor inicial, sessões de quimioterapia e radioterapia. Por algum tempo, bastou para retardar a doença. Quando os tumores se espalharam pelos ossos sem dar sinal de responder às drogas tradicionais, Medeiros chegou a tentar um novo tipo de tratamento, considerado uma das armas mais promissoras contra o câncer, a imunoterapia. Esse tipo de droga deixa o tumor mais vulnerável à ação das defesas do organismo. Era vendido nos Estados Unidos, e não no Brasil. Um funcionário da empresa da família de Medeiros viajou para buscar o medicamento. Foram US$ 15 mil, posteriormente reembolsados pelo plano de saúde, acionado na Justiça pela família de Medeiros. Um mês e meio de tratamento. Nenhum resultado. Diante do fracasso, o médico de Medeiros adotou o último recurso naquele momento: o comprimido rosado, uma droga que não estava à venda.
Ainda considerado experimental, o medicamento não tinha sido aprovado por autoridades sanitárias em nenhum país. Havia apenas os resultados da segunda etapa de testes em seres humanos – normalmente são exigidas três fases para que uma empresa possa pedir a autorização para vender uma droga. Os resultados pareciam promissores para pacientes com quadro semelhante ao de Medeiros, cujo tumor carregava uma mutação que se fortaleceu em resposta aos tratamentos anteriores. Seu médico entrou em contato com a empresa que pesquisava a droga, uma multinacional com sede no Reino Unido, para explicar o caso e pedir que fornecessem o medicamento. O argumento tem nome: compaixão.
A empresa não tinha obrigação de atender ao pedido e, seguindo a legislação brasileira, deveria fornecer gratuitamente a droga, que, ao chegar ao mercado, custaria dezenas de milhares de dólares. “Trata-se de reconhecer o sofrimento do outro e estabelecer uma relação de ajuda”, diz José Roberto Goldim, professor de bioética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Esse tipo de pedido, que recebe o nome de uso compassivo – adjetivo derivado de compaixão, por seu caráter solidário –, está se tornando um instrumento importante para possibilitar o acesso de pessoas com doenças graves a medicamentos que, virtualmente, não existem. Estão fora do alcance por ainda seguirem em estudo e não serem tratamentos comprovados. Alguns têm potencial, se não de salvar vidas, de estendê-las. Em muitos casos, são apenas meses, mas preciosos para o paciente e sua família. É uma tentativa de conciliar o tempo escasso de quem tem uma doença ao tempo da ciência, necessariamente cadenciado pelas etapas da pesquisa e das regras regulatórias, que garantem a segurança humana.
No ano passado, no Brasil, 190 pessoas solicitaram à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, autorização para que empresas fornecessem drogas ainda não aprovadas no país. Neste ano, até a primeira semana de julho, foram 292 pedidos, um crescimento de 53%. A solicitação de uso compassivo é individual, mas é possível recorrer a outro tipo de programa, chamado acesso expandido, que permite a formação de grupos de pacientes para receber um medicamento em fase de desenvolvimento ou sem registro. Em 2015, foi solicitada à Anvisa a formação de seis grupos. Neste ano, até a semana passada, de três.
O uso compassivo ganhou destaque no país nos últimos meses, desde que grupos de pacientes com câncer passaram a invocá-lo para pedir acesso à fosfoetanolamina sintética. A substância, apelidada de “pílula do câncer”, nunca completou as etapas mais básicas de pesquisa em animais. Assim mesmo, foi distribuída por anos, irregularmente, pelo químico Gilberto Chierice, às portas do Instituto de Química da Universidade de São Paulo em São Carlos, como se fosse a cura para todo tipo de tumor. Como não há indícios científicos de sua ação, apenas relatos anedóticos, a fosfo não cumpre os pré-requisitos para o uso compassivo.
Uma resolução da Anvisa estabelece os critérios para autorizar o uso experimental de uma droga. Em vigor desde 2013, ela determina que apenas substâncias que estejam em processo de desenvolvimento clínico, com alguns dados de eficácia e segurança em seres humanos, possam ser pedidas para uso compassivo.
Um médico, e não o paciente, deve fazer a requisição da droga à empresa desenvolvedora e à Anvisa, que a autoriza a fornecer uma substância sem registro a um paciente que não faz parte de uma pesquisa. “A decisão é médica. Não pode ser emocional”, diz o advogado americano David Farber, que já atuou pela indústria farmacêutica nos Estados Unidos e estuda os impactos do uso compassivo. “É comum a pessoa pensar que tem o direito de tentar de tudo porque está no fim da vida. Mas uma droga pode tornar esse período mais doloroso ou até apressar a morte.”
Essa é a aposta que médico e paciente têm de fazer ao cogitar um composto experimental: vale a pena correr o risco? Uma nova droga é aprovada quando os benefícios comprovadamente superam os perigos. Para uma experimental, não há certeza. “Às vezes, não compensa tentar”, diz o oncologista Carlos Gil, da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). “É mais seguro manter a qualidade de vida, controlando os sintomas, do que arriscar efeitos colaterais.”
Como dosar esses riscos é um desafio até para os próprios médicos. Em um artigo no jornal americano The New York Times, o pediatra Darshak Sanghavi conta como ele e a irmã, também médica, escreveram uma carta ao convênio de saúde do pai, nos Estados Unidos, pedindo que cobrisse um tratamento ainda não comprovado para o patriarca da família. O convênio aceitou, e uma nova droga passou a ser administrada ao pai de Sanghavi, em estágio avançado de uma doença que causa dificuldade de respirar. Três vezes por semana, ele recebia injeções de uma substância já aprovada para tratar doenças do esqueleto e do sistema imunológico, mas cujos estudos para desordens respiratórias mal começavam. Apenas nove pacientes haviam sido submetidos ao tratamento. Os resultados no pai de Sanghavi decepcionaram. Ele passou a sofrer com febres e dores que o deixaram preso à cama. Os pulmões não melhoraram. Morreu dois anos depois da publicação do estudo que inicialmente havia dado esperança à família. “Teria sido melhor que ele nunca tivesse feito o tratamento”, escreveu Sanghavi. Três anos após a morte do pai, o médico leu em uma revista científica o veredicto final sobre o uso da substância para tratar o pulmão: era ineficaz e aumentava o risco de infecções respiratórias. Sanghavi e a irmã convivem com o peso de ter feito a aposta errada. E são médicos. É possível que o desejo fervoroso de encontrar uma saída tenha sobrepujado o discernimento de ambos para avaliar a insuficiência de evidências sobre o tratamento.
Adequar a expectativa de cura do doente e seus familiares a um prognóstico pessimista é uma das tarefas mais delicadas de médicos que tratam pacientes em risco de morrer. Ironicamente, o avanço científico a torna ainda mais complicada. “Abrem-se frentes enormes e há um excesso de entusiasmo”, afirma o oncologista Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). O aperfeiçoamento de técnicas para analisar e manipular o material genético permitiu a criação de moléculas capazes de atacar mutações específicas. Algumas estenderam de maneira significativa a vida de pacientes. Criou-se a sensação de que a cura está a caminho. E o uso compassivo virou um atalho para atingi-la. “De um lado, o paciente quer ouvir boas notícias”, afirma Hoff. “Do outro, o médico quer comprar tempo para o paciente e postergar a conversa difícil sobre o esgotamento das opções de tratamento.”
Nos Estados Unidos, país que concentra a maior parte da pesquisa farmacêutica, o número de pedidos de uso compassivo cresceu 25% em cinco anos. No ano passado, a agência que regula medicamentos, a FDA, recebeu 1.262 solicitações, das quais afirma aprovar 99%. Para alguns grupos de pacientes, não basta. Eles afirmam que as regras da agência – que, como no Brasil, restringem o uso a substâncias que já tenham alguns dados clínicos – obstruem a autonomia do paciente de decidir que tratamentos fazer. A pressão resultou na criação de leis que garantem o “direito de tentar” em 31 Estados. Em tese, elas eliminam a necessidade de a FDA autorizar o acesso a drogas experimentais: o pedido pode ser feito diretamente pelo paciente a empresas e universidades. Na prática, a validade dessa legislação é polêmica. “Que empresa vai assumir o risco de dar uma droga em fase de teste a um paciente, sem autorização da FDA?”, afirma o advogado americano Farber. “E se o paciente piorar? É um risco jurídico.”
O acesso a substâncias experimentais, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, depende da inclinação à compaixão da empresa responsável pela pesquisa. Ela avaliará se está disposta a fornecer o composto gratuitamente, o que é regra. Em muitos casos, o custo de fabricação é alto e a produção é feita na medida para atender apenas os inscritos formalmente nos protocolos de pesquisa. A preocupação com a reputação da substância em desenvolvimento também afeta a decisão. “Existe o risco de criar uma imagem inadequada da droga caso ela não ajude aquele paciente”, afirma Eurico Correia, diretor médico da farmacêutica Pfizer no Brasil. Mesmo que casos isolados, fora dos protocolos de pesquisa, não influenciem a aprovação, a repercussão negativa pode afetar as vendas do medicamento no futuro. O contrário também vale. Para o oncologista Carlos Barrios, professor da PUC-RS, mais que benevolência das empresas, há um interesse prático na concessão para uso compassivo. “O laboratório quer que os médicos daqueles pacientes ganhem experiência com o medicamento e comentem com os colegas sobre os bons resultados.”
Os critérios que levam uma empresa a fornecer a droga não costumam ser públicos. No caso da Pfizer, que desde 2011 forneceu medicamentos ainda não aprovados no Brasil para 52 pacientes com câncer de pulmão, mama e leucemia, a decisão vem da sede da empresa, nos Estados Unidos. “Tentamos usar critérios muito parecidos com os do protocolo de pesquisa”, afirma Correia.
A Janssen, uma farmacêutica do grupo Johnson & Johnson, adotou nos Estados Unidos uma iniciativa pioneira para tornar seus parâmetros transparentes. Para escolher quem poderia ter acesso a uma droga que estava em desenvolvimento para tratar mieloma múltiplo, um tipo de câncer do sangue, a empresa montou um comitê de especialistas, em parceria com o grupo de ética médica da Escola de Medicina da Universidade de Nova York. A droga era um medicamento biológico, produzido a partir de células vivas, num processo complexo e caro. A empresa recebeu 76 pedidos, mas o comitê recomendou que 60 pacientes fossem contemplados. “O primeiro critério é não fazer mal”, diz o bioeticista Arthur Caplan, diretor da divisão de ética médica da Universidade de Nova York e um dos membros do comitê. “Se um paciente está doente demais a ponto de a droga poder matá-lo, não deve recebê-la. Quem está doente há mais tempo e quem tem dependentes têm prioridade.” A ideia é estender o comitê para avaliar os pedidos de uso compassivo para outras drogas. No momento, o grupo seleciona pacientes de fora dos Estados Unidos, já que lá a droga foi aprovada pela FDA em novembro. O tratamento custa cerca de US$ 20 mil por mês.
Os critérios pouco transparentes não são os únicos obstáculos ao uso compassivo. Há um filtro socioeconômico invisível. “Aqueles que podem pagar por melhor atendimento têm mais chances de conseguir drogas experimentais”, afirma a bioeticista Alison Bateman-House, da Universidade de Nova York. Isso ocorre porque os médicos bons e bem relacionados é que ficam a par das novidades nas bancadas dos laboratórios. Além disso, o prestígio do profissional também pode pesar na decisão da empresa. Um médico admirado tem maior potencial para influenciar outros com sua opinião sobre o novo medicamento. “O laboratório tem de ter confiança no médico”, afirma Barrios, oncologista da PUC-RS. “A empresa precisa ter certeza de que o profissional cuidará do paciente adequadamente e passará informações sobre os efeitos da droga que poderão ser úteis.”
O médico também tem de ter disposição – e uma equipe de apoio – para montar o dossiê exigido pelo órgão de vigilância sanitária e pela empresa, a fim de pedir o uso compassivo. No Brasil, a burocracia é alvo de críticas. “Perde-se tempo aguardando a resposta da Anvisa, fazendo o pedido para a empresa farmacêutica, aguardando o medicamento, geralmente importado, chegar e ser liberado”, diz o oncologista Rafael Kaliks, diretor científico do Instituto Oncoguia, entidade que defende os direitos dos pacientes. “Nessa brincadeira, um paciente em estado grave espera até dois meses.”
A doença não espera. “Já perdi muito paciente por causa dessa demora para conseguir drogas experimentais”, diz o oncologista Antônio Carlos Buzaid, diretor-geral do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes do Hospital São José, em São Paulo. No fim do ano passado, ele viveu com Medeiros, o paciente do início desta reportagem, a angústia de lutar contra o tempo. Foram oito semanas até ter em mãos o comprimido importado. Poderia ter demorado mais. Buzaid encontrou outra paciente no Brasil que já havia importado o medicamento e que aceitou emprestar alguns comprimidos a Medeiros. No dia em que ele engasgou e achou ter perdido o aguardado comprimido, o frasco tinha acabado de chegar a Natal pelas mãos de sua irmã, que fora ao Rio de Janeiro buscá-lo com a paciente solidária. “Meu anjo”, é como Medeiros se refere a ela.
Os comprimidos o encontraram prestes a ser entubado. Foram sete dias de medicação até Medeiros ter alta, uma recuperação com que ele não sonhara nem nas previsões mais otimistas. Sete meses após o início da medicação, os tumores nos pulmões e as metástases nos ossos não desapareceram completamente, mas diminuíram de tamanho. Ele aproveita para buscar os filhos na escola e passar todo o tempo com eles. Sabe que podem vir dias difíceis. Nesse caso, caberá a seu médico, Buzaid, pensar em novas respostas. “O que mais faço no fim de semana é mandar e-mails para meus amigos médicos, que trabalham com pesquisa fora do país, perguntando se sabem de novas drogas em desenvolvimento”, diz Buzaid.
Quando o medicamento chegou a Medeiros, no final de novembro, fazia duas semanas que a droga fora aprovada em um processo de registro acelerado da FDA nos Estados Unidos. Isso significa que ainda faltam estudos que confirmem sua eficácia, para que ela receba a aprovação definitiva. Por enquanto, 411 pacientes participaram dos testes. Em até 70%, houve redução parcial dos tumores, algo semelhante ao que aconteceu com Medeiros. Como ele conseguiu acesso ao medicamento por compaixão, não há custos com o tratamento. Nos Estados Unidos e na Europa, onde o medicamento já é vendido, ele pode custar US$ 12 mil por mês.
Não é raro que drogas pedidas para uso compassivo, sem registro no Brasil, já tenham sido aprovadas – ainda que provisoriamente – nos Estados Unidos e na Europa. Dos 16 medicamentos solicitados à Anvisa entre 2015 e maio deste ano, 13 já tinham registro na FDA antes de 2015.
A lentidão para registrar novas drogas no Brasil tem dois componentes. O primeiro é a demora das empresas em submeter seus medicamentos à aprovação no Brasil. “Muitos demoram porque sabem que a Anvisa pedirá mais dados, que eles ainda não têm, ou porque preferem investir primeiro no mercado americano e europeu, maiores”, diz o oncologista Gilberto Lopes, do grupo Oncoclínicas, no Brasil, e professor da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Um levantamento feito por ele sugere que as farmacêuticas levam mais de um ano, após enviar o pedido de aprovação nos Estados Unidos, para tentar o registro no Brasil. Em segundo lugar, há a demora da Anvisa em analisar o pedido. O levantamento sugere que a Anvisa demora, em média, oito meses a mais que a FDA para aprovar uma droga oncológica. Se nos Estados Unidos o registro sai em seis meses, no Brasil demora 14.
“Falta estrutura na Anvisa para analisar os pedidos com mais agilidade, mas há também um componente ideológico”, diz Antônio Brito, presidente da Interfarma, entidade que representa a indústria farmacêutica. “Há resistência em aceitar análises feitas por agências de outros países e uma pressão dos escalões superiores da Anvisa para negar ou postegar a aprovação de medicamentos. É uma maneira de fazer com que não seja pedida a incorporação desses medicamentos ao Sistema Único de Saúde.”
Um levantamento da Interfarma sugere que, mesmo quando os medicamentos oncológicos são aprovados no Brasil, não é regra serem incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Das 18 principais drogas usadas para tratar os cânceres mais comuns em 2014, 17 tinham registro, mas apenas seis estavam disponíveis na rede pública.
A Anvisa nega qualquer motivação financeira. “Se há demora, se deve a nossa própria fragilidade, e não a nenhuma influência”, diz o médico sanitarista Jarbas Barbosa, diretor-presidente da Anvisa. Ele diz defender o aumento do intercâmbio de informações entre agências sanitárias para agilizar o registro de medicamentos, mas não abre mão da autonomia sobre a análise. “É uma questão de soberania nacional. Se acatarmos as decisões de outras agências, estaremos abrindo mão da nossa responsabilidade sanitária”, afirma Barbosa, com um argumento compreensível. Em seguida, usa outro, um tanto alienígena à questão. “Se aprovássemos automaticamente as drogas porque foram registradas nos Estados Unidos, teríamos uma enxurrada de produtos americanos e liquidaríamos a indústria nacional.”
No meio da troca de acusações, resta ao paciente recorrer à Justiça para pedir que planos de saúde ou o SUS arquem com medicamentos sem registro. Ou ter a sorte de contar com médicos e centros de saúde informados sobre a possibilidade do uso compassivo. “No Brasil, com a dificuldade de acesso a medicamentos de ponta, o uso compassivo é uma arma poderosa”, diz Gil, da Sociedade de Oncologia Clínica. “É uma maneira de o paciente ter acesso a uma tecnologia a que nunca teria no SUS.”
É o caso da estudante paulista Sabah Mohamed Ali, de 18 anos, atendida no Icesp, centro de referência no tratamento de câncer que adota o uso compassivo como uma estratégia. Sabah usa desde setembro de 2015 uma droga para combater um câncer de pulmão, depois de passar por quimioterapia e radioterapia nos últimos dois anos. Sabah lida com uma forma rara de câncer, descoberto depois de sentir dores no peito. Por meses, ela ignorou o incômodo, que julgava resultar da má postura nas horas de estudo. Quando recebeu o diagnóstico, no 2o ano do ensino médio, estudava para o vestibular. A princípio, cogitou engenharia. Depois de descobrir o tumor de 7 centímetros no pulmão esquerdo, a medicina entrou em seus planos. “Quero ajudar as pessoas”, diz a jovem, que faz cursinho.
O medicamento está aprovado nos Estados Unidos desde abril de 2014. A fabricante afirma que submeteu o pedido de registro no Brasil à Anvisa. No mercado americano, o tratamento com a droga custa cerca de US$ 13 mil por mês. “Não sei até quando terei de tomar, mas o médico me disse para pensar como se fosse um remédio de pressão”, diz Sabah, que se angustia a cada três meses com uma nova rodada de exames. Até agora, o tumor que tomava parte do pulmão parece estar se fragmentando. “É um bom sinal”, diz Tiago Takahashi, o oncologista que acompanha Sabah no Icesp. Para ela e sua família, a droga é a maior esperança. “Quando jogam uma bomba como a notícia do câncer, a única coisa que você espera é que o medicamento dê certo”, diz Sahar, de 16 anos, irmã de Sabah, que raspou os cabelos em solidariedade à irmã nos tempos da quimioterapia. Agora elas veem os cabelos crescer e a vida prosseguir.
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Revista Época