“REDUÇÃO DOS GASTOS PÚBLICOS COM SAÚDE É INADMISSÍVEL”, ALERTA PROCURADOR
17/08/2016
Comemorou-se nesta segunda-feira (15) o Dia Nacional das Santas Casas de Misericórdia. A data foi instituída em 1988, “com a finalidade de evocar o importante significado histórico da criação das ‘Misericórdias’, e de consagração aos inumeráveis e valiosos serviços prestados ao país, em termos assistenciais e sociais, especialmente nos campos da promoção, proteção e recuperação da saúde pelas Santas Casas de Misericórdia”, conforme diz o Decreto 96.500/88. Mas, mesmo tendo se tornado as maiores parceiras do Sistema Público de Saúde, juntamente com outras instituições sem fins lucrativos, o segmento enfrenta uma crise financeira, agudizada pela crise econômica no Brasil.
Para o procurador do Estado do Paraná e palestrante do 26º Congresso Nacional das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos, Dr. Fernando Mânica, o financiamento da Saúde sempre foi insuficiente. De acordo com ele, para proteger o SUS, é necessária a estabilização econômica. “Enquanto isso não acontece, devemos estar atentos a medidas de urgência que podem impactar permanentemente o financiamento do sistema. Não me parece constitucionalmente admissível e politicamente defensável a ideia de diminuir o percentual de gastos públicos com saúde”, ressalta.
Dr. Mânica defende, ainda, a necessidade de renegociação dos contratos que se encontram defasados. Segundo ele, o problema apenas será solucionado com a celebração de novas modalidades de ajuste, que contenham mecanismos de proteção das entidades contra a defasagem econômico-financeira. “São contratos de alta complexidade, que devem ser alinhados a partir de parâmetros que garantam o alcance de metas e a boa gestão dos recursos”, diz.
O financiamento da Saúde será debatido durante o 26º Congresso, no auditório principal, no dia 31 de agosto, às 16h30. A palestra faz parte também da programação do Fórum Jurídico e contará, ainda, com a participação do presidente da Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), Dr. Gilmar de Assis.
Confira a íntegra da entrevista com o Dr. Fernando Mânica:
Como o sr. avalia o cenário econômico atual da Saúde?
Dr. Fernando Mânica – O cenário é preocupante, tanto sob o aspecto conjuntural quanto estrutural. A conjuntura econômica do país é grave e o primeiro passo para proteger o SUS consiste na estabilização econômica. Enquanto isso não acontece, devemos estar atentos a medidas de urgência que podem impactar permanentemente o financiamento do sistema. Não me parece constitucionalmente admissível e politicamente defensável a ideia de diminuir o percentual de gastos públicos com saúde. Levando essa discussão para a esfera jurídica, devemos lembrar que não existem direitos absolutos, mas existe um núcleo mínimo de proteção de cada direito. Na Saúde, o investimento estatal previsto na Constituição refere-se ao mínimo necessário à existência do SUS. Sua diminuição aniquilaria a própria essência do sistema. Considerando que o SUS é condição de garantia do direito à saúde de milhões de brasileiros, penso que seu financiamento deve ser entendido, nessa medida, como cláusula pétrea.
Mas para além da crise econômica atual, em termos estruturais, o financiamento da Saúde Pública no Brasil sempre foi insuficiente. Isso por dois grandes motivos: o primeiro refere-se à falta de consenso acerca da extensão do dever estatal na saúde. Enquanto sociedade, nós ainda vivemos na era que eu chamo de ‘defesa do direito à saúde’. Passaram-se quase 30 anos da Constituição de 1988 e ainda não conseguimos passar para a segunda etapa, que denomino de ‘delimitação do direito à saúde’. Nenhum país do mundo oferece tudo a todos, mas esse tem sido o tom das discussões no Brasil. A defesa do respeito ao direito à saúde é válida e necessária, mas temos de avançar para a segunda fase de discussões. Nela, devemos enfrentar a seguinte questão: qual o pacote de ações que o Poder Público deve disponibilizar para a proteção, promoção de recuperação da saúde das pessoas? Apenas com essa delimitação, a ser respeitada por todos, é que teremos condições de definir quanto efetivamente precisamos investir em saúde.
Portanto, a equação econômico-financeira da Saúde Pública no Brasil jamais foi resolvida. Sequer conseguimos delimitar os fatores dessa conta, o que dizer de seu resultado. O que sabemos, por comparação com a experiência internacional, é que prometemos muito, investimos pouco e gerenciamos mal. O SUS é um grande sistema público de saúde e precisamos protegê-lo e aprimorá-lo. Quem sabe consigamos aproveitar esse cenário de crise econômica e fazer com que isso ocorra.
O que as entidades poderiam fazer para melhorar o financiamento? As ações coletivas são adequadas?
Dr. Fernando Mânica – Há muito tempo eu venho defendendo que as entidades privadas devem assumir a condição de concessionárias de serviços públicos. Não é admissível que empresas que cuidam de estradas, que conduzem ônibus ou que mantêm redes de esgoto tenham sua condição econômica respeitada, enquanto prestadores de serviços de saúde permaneçam em situação de penúria.
A legislação e a teoria jurídica das concessões de serviços públicos são bastante avançadas, sendo que predomina o entendimento de que a proteção econômica da empresa gera a proteção do próprio serviço. Essa percepção é vinculada ao raciocínio segundo o qual as empresas concessionárias investem primeiro, prestam o serviço depois para só então terem seus investimentos amortizados ao longo do tempo. A garantia de remuneração adequada das concessionárias de serviços públicos decorre da necessidade de amortização de um investimento prévio.
As pessoas ainda não se deram conta, mas isso também acontece na Saúde. Garantir a devida remuneração de entidades que prestam sérvios públicos de saúde é condição para a existência das entidades privadas, muitas das quais sequer auferem lucro, e também é condição de garantia do direito fundamental à saúde do cidadão. Além disso, os investimentos em infraestrutura e equipamentos de Saúde têm sido cada vez mais elevados. Nada justifica que o Estado, a legislação e mesmo os juristas classifiquem prestadores de serviços de saúde em categoria diversa dos concessionários de serviços públicos.
As entidades privadas que prestam serviços ao SUS devem, portanto, unir-se em busca de uma nova regulamentação que as posicione em condição equivalente à de concessionárias de serviços públicos, com todas as garantias daí decorrentes. Isso pode ser feito mediante pressão sobre os órgãos constituídos, realização de estudos e apresentação de projetos de lei e ajuizamento de medidas judiciais coletivas. Na minha opinião, a prestação de serviços públicos de saúde por entidades privadas sem fins lucrativos deve ser disciplinada por contratos com prazo, objeto, metas e financiamento respeitados de parte a parte, como ocorre nos contratos de concessão de serviços públicos – em especial nas concessões administrativas (PPP).
A negociação dos contratos pode ser uma opção mais viável?
Dr. Fernando Mânica – A renegociação de contratos defasados é necessária e urgente. Mas o problema apenas será solucionado com a celebração de novas modalidades de ajuste, que contenham mecanismos de proteção das entidades contra a defasagem econômico-financeira. São contratos de alta complexidade, que devem ser alinhados a partir de parâmetros que garantam o alcance de metas e a boa gestão dos recursos.
O aumento da judicialização é um reflexo dos problemas enfrentados no atendimento/acesso à Saúde?
Dr. Fernando Mânica – É possível identificar duas grandes causas para a judicialização da Saúde Pública: a primeira decorre da incapacidade de o Estado brasileiro cumprir as políticas públicas de saúde necessárias ao atendimento da população. Existem problemas de financiamento e de gestão que provocam a falta de resposta estatal satisfatória. Em tais casos, o Poder Judiciário é chamado para sanar essa omissão, determinando que o Poder Público cumpra seus deveres; a segunda grande causa consiste na falta de delimitação dos deveres estatais no setor. Como disse acima, não passamos no Brasil ao segundo estágio de implantação do SUS, que se refere à delimitação das tarefas estatais voltadas à garantia do direito à saúde. Com isso, há numerosos casos de determinação judicial de fornecimento de medicamentos e procedimentos inadequados, ineficazes e inseguros.
O problema, obviamente, não reside na relação paciente-juiz, mas na admissão pelo ordenamento brasileiro de que essa relação ocorra. Nos casos em que o cidadão tem seu direito à saúde negado pelo Estado, pelo não fornecimento de determinado procedimento ou tratamento, a discussão do caso deve ser coletiva, com efeito para todas as pessoas naquela situação. Não é admissível que apenas aquela pessoa que se socorreu do Poder Judiciário tenha acesso a determinado tratamento. Se um tratamento é devido a uma pessoa, deve ser incorporado à política pública de saúde para disponibilização a todas as pessoas na mesma situação.
Nesse sentido, podemos perceber alguns efeitos positivos da judicialização no SUS. Um deles refere-se à maior agilidade do Estado na incorporação de novos tratamentos aos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas oficiais. Outro avanço refere-se à estrutura e organização de diversos órgãos do Poder Judiciário, sob a liderança do CNJ, que tem criado órgãos específicos para apoio e julgamento de demandas no setor de saúde.
Em qualquer situação, o adequado financiamento das entidades privadas prestadoras de serviços de saúde, com a delimitação correta de seus deveres, por meio de contratos com alto grau de complexidade e detalhamento, certamente ocasionará a diminuição da judicialização.
As parcerias com o Judiciário e com os gestores municipais e estaduais podem ser construídas, a fim de resolver os conflitos?
Dr. Fernando Mânica – A solução de todo e qualquer conflito possui maior eficácia quando decorre de interlocução e consenso. A Saúde Pública envolve conhecimento de três áreas do conhecimento bastante especializadas: o direito, a medicina e a administração. Problemas de Saúde Pública envolvem essas três áreas, de modo que soluções construídas sob a perspectiva de apenas uma delas jamais serão suficientes. A parceria e a integração entre esses três mundos é condição de sobrevivência do SUS.
Devemos lembrar, nessa perspectiva, que o enfrentamento de questões relacionadas à Saúde é novidade para o Poder Judiciário. A solução, e mesmo a prevenção de conflitos, pode e deve ser buscada na troca de informações e de conhecimento entre todos os envolvidos. O que não pode ocorrer, contudo, é o deslocamento da esfera política ou médica para o Poder Judiciário. As parcerias e a integração devem fortalecer o próprio sistema, mas jamais integrar o Poder Judiciário à sua estrutura. Não podemos transformar o Poder Judiciário na porta de entrada do Sistema de Saúde.
Fonte: Revista Saude Online