O DESAFIO DOS NOVOS PREFEITOS NA SAÚDE
04/11/2016
Era começo de tarde quando Aparecida Lima da Silva bateu palmas diante do portão da casa azul. Do lado de dentro, Alice de Oliveira gritou que ela esperasse um minuto – ia buscar as chaves. Acostumada à visita, já imaginava do que se tratava. Desde 2014, Aparecida frequenta a casa onde Alice e o marido, Alfredo de Oliveira, vivem há 40 anos, no município de Américo Brasiliense, interior de São Paulo. O casal – ela com 68 anos e ele com 79 – vive a três ruas de uma das Unidades Básicas de Saúde da cidade. Mas quem reserva um momento para ouvir a história deles sai com a impressão de que, para os dois, a saúde sempre esteve a muitos quilômetros. O distanciamento tem efeitos visíveis – como a mão paralisada de Alfredo. Ele nasceu na Bahia e conheceu Alice no interior de São Paulo. Criaram sete filhos, trabalhando no campo. Nunca houve tempo para cuidar da saúde. Oliveira passara anos cuidando da pressão arterial alta apenas quando tinha uma crise e passava mal. Criou uma bomba-relógio, detonada em três ocasiões. Sofreu três acidentes vasculares. O mais recente, há cinco anos, paralisou sua mão direita.
Os problemas de Oliveira não surgiram por simples desatenção dele com a própria saúde. Nem por falta de esforço do município. No ano passado, o município de Américo Brasiliense aplicou 35% de sua receita na Saúde. É uma parcela alta. A lei determina que os municípios reservem, no mínimo, 15% para o setor. Em valores absolutos, em 2015, Américo aplicou na Saúde R$ 21 milhões, cerca de R$ 550 por habitante. Rosana, a cidade paulista com melhor nota no acesso e qualidade dos serviços públicos de saúde, investiu R$ 927 por habitante no mesmo período. Cercada por canaviais, a 80 quilômetros de Ribeirão Preto, Américo é uma cidade calma, de 40 mil habitantes, com casas térreas e ruas vazias. A economia é fraca e a arrecadação de impostos também. Depende, em grande parte, de uma solitária usina de álcool e açúcar.
Como proporção da receita da prefeitura, o investimento de Américo em Saúde é significativo. Mas insuficiente. Américo lidera a lista dos 100 municípios do país que mais investem em proporção à receita e têm os piores resultados no Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde (IDSUS). Numa escala de 0 a 10, está junto com municípios que tiveram notas entre 2,5 e 3,9 (o governo não divulga as notas individuais de cada município). A média nacional é 5,47. O diagnóstico do sistema de saúde de Américo Brasiliense revela sintomas de uma doença que afeta todo o Brasil. Estamos pouco preparados para oferecer cuidados básicos – e preciosos – à população. Eles ajudam a prevenir quadros crônicos incapacitantes, como os acidentes vasculares de Oliveira. Quadros assim exigem internação, deixam sequelas, são devastadores para o cidadão e para as contas públicas, por exigir cuidados caros. O caso de Oliveira poderia ter sido evitado se Aparecida – a visitante regular de Oliveira e Alice, como contado no início da reportagem – tivesse surgido antes.
Aparecida é uma das agentes comunitárias de saúde que, há quatro anos, começaram a visitar Oliveira e Alice. Agentes vão às casas entender a vida e os problemas dos cidadãos, a fim de prevenir doenças ou evitar que se agravem. Uma conversa com o casal bastou para que Aparecida e suas colegas percebessem que Oliveira e Alice não conseguiam ler as letras apertadas nas bulas e caixinhas de medicamentos. Aparecida resolveu o problema reorganizando os medicamentos da casa. Colocou os comprimidos em saquinhos identificados com desenhos. O remédio da manhã identificou com um sol. O da hora do almoço com um prato de comida. Oliveira passou a tomar os medicamentos na hora certa e com disciplina. Os saquinhos desenhados poderiam ter ajudado a evitar o AVC – e a mão paralisada de Oliveira. Um problema de Américo Brasiliense é que há poucas Aparecidas, o suficiente para atender apenas um quinto da população. Apenas uma das duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) oferece esse tipo de acompanhamento. Uma terceira está em construção.
SAÚDE EM CASA
Como resultado, o atendimento de urgência drena uma fatia polpuda dos recursos da Saúde. “Em média, 30% do meu gasto mensal vai para o pronto atendimento e 50% para a atenção básica”, diz William Martins, um pediatra magro e sorridente, secretário municipal de Saúde de Américo Brasiliense. Pelo único pronto-socorro da cidade passam, mensalmente, entre 5 mil e 7 mil pessoas. Em seis meses, o equivalente a toda a população da cidade passa pelo atendimento de urgência. Na maioria das vezes, em busca de alívio para problemas que poderiam ser prevenidos na assistência básica – como dores de coluna ou crises de hipertensão. Um círculo vicioso consome recursos e a saúde da população. Para rompê-lo, Américo – como todos os governos do país – teria de trabalhar simultaneamente em três frentes: facilitar negócios, a fim de estimular a atividade econômica e, como consequência, a arrecadação; reorganizar o gasto público, a fim de investir o máximo possível e com a máxima eficiência nas áreas fundamentais, como Saúde; e aumentar a parcela do gasto com saúde preventiva. Com o atendimento de emergência lotado, tendo de escolher entre tratar e prevenir, Américo escolhe a primeira opção. Uma decisão tomada por muitos municípios.
O cenário ideal seria aumentar os recursos da Saúde para fazer os dois: tratar e prevenir. No momento, não dá. “Não consigo aumentar meu investimento”, diz Martins. “Se fizer isso, faltará dinheiro para outras áreas.” O dilema é partilhado pelos demais municípios. Em média, as cidades no país investem 23,2% das receitas próprias no setor. “As cidades estão sobrecarregadas”, diz Fernando Monti, diretor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Essa realidade dura aguarda a nova leva de prefeitos que assumirá em janeiro.
Quando o SUS começou a ser implementado no Brasil, no fim dos anos 1980, decidiu-se que o sistema se basearia na prevenção. “Isso significava que a população seria mapeada, para saber como a pessoa vivia e quais riscos tinha de desenvolver algum problema”, diz Nelson dos Santos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. A Constituição de 1988 determinou que esse tipo de cuidado seria garantido a todo brasileiro. E que o financiamento do sistema era responsabilidade compartilhada entre municípios, estados e União. Em 28 anos de SUS, no entanto, diminuiu a parcela que o governo federal planejava, originalmente, destinar à Saúde. Em 1988, a Constituição previa que fossem usados, na Saúde, 30% do orçamento da Seguridade Social (formado pela soma de contribuições como o PIS, Programa de Integração Social, e o Pasep, Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público). Em 1992, durante o governo Collor, essa determinação foi descumprida. Desde então, o percentual de 30% nunca foi aplicado. “Em 28 anos de SUS, nunca tivemos financiamento adequado”, diz Arthur Chioro, professor da Universidade Federal de São Paulo e ex-ministro da Saúde durante o governo Dilma Rousseff. A participação federal no financiamento da saúde pública minguou. Em 1991, a União respondia por 73% e os municípios por 12%. A população aumentou e envelheceu, os gastos aumentaram, mas o investimento federal não cresceu no mesmo ritmo. Em 2015, a União respondeu por 43% do investimento público em saúde e os municípios por 31% .
O baixo investimento federal compromete o sistema de saúde. O Brasil aplica na área o equivalente a 3,8% do PIB. É pouco, se comparado a outros países com sistemas universais de saúde. É pouco também na comparação com vizinhos latino-americanos. E quando a saúde falta, é da prefeitura que o cidadão cobra. “Todo mundo me conhece”, diz Martins, o secretário de Saúde de Américo. “E me procuram na rua, para reclamar.” Sem fechar o sorriso, enumera os problemas com que lida. Dois têm lugar central. O primeiro são as ordens judiciais que chegam a sua mesa, cobrando que o município forneça tratamentos caros a poucas pessoas. “Por mês, gasto cerca de R$ 25 mil com ordem judicial. É quanto eu usaria na compra de remédios para a população toda”, diz Martins. O segundo problema é a dificuldade para contratar profissionais. Faltam médicos no pronto-socorro: “Abri concurso, mas ninguém quer trabalhar pelo valor que a gente pode pagar”, afirma.
Apesar das dificuldades, Américo se esforça para estruturar a atenção básica porque sabe que, no longo prazo, é a alternativa mais barata. Compreender isso é importante para os novos secretários municipais que assumirão a partir de 2017. Eles trabalharão em um momento de receita baixa. Entidades como o Conasems temem os possíveis efeitos da Proposta de Emenda Constitucional 241. Se aprovada, a PEC mudará as regras que regulam o investimento federal em saúde. A partir de 2018, há chances de o valor mínimo destinado (o investimento de 2017 corrigido pela inflação) ser inferior àquele que seria aplicado pelas regras atuais. O governo poderá destinar à Saúde mais que o mínimo legal, mas não é a tradição: nos últimos 16 anos, só aconteceu em 2013, 2014 e 2015.
Num cenário de grandes necessidades e parcos recursos, os novos gestores terão de ser eficientes. Isso pode significar mudar como o trabalho em saúde é organizado. “Precisamos melhorar o jeito como a gestão do SUS se encontra com os usuários”, diz Laura Macruz, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. O atendimento preventivo é peça central para mudar o sistema de saúde e a vida de pessoas como Manuelina Cassimiro, de 75 anos. Ela chamou a atenção de Maria Lúcia Seixas, técnica de enfermagem de uma UBS de Américo Brasiliense. “A Manuelina parecia muito fraca e muito tristinha”, diz Maria Lúcia. Por três meses, Maria Lúcia foi à casa da cidadã semanalmente. Descobriu que Manuelina não tomava com regularidade o remédio para controlar seu hipotireoidismo, que pode causar fraqueza e depressão. Maria Lúcia lhe ensinou. Manuelina ganhou saúde – e uma nova amiga. “Eu ainda apareço para bater um papo”, diz Maria Lúcia. “Quando é que a gente vai beber aquele chope, dona Manuelina?”
Fonte: Revista Época