POR QUE A SANTA CASA NÃO PODE MORRER
27/03/2017
Maior hospital filantrópico privado da América Latina, a instituição paulista vive a pior crise de sua história, com dívidas que somam R$ 800 milhões. O que precisa ser feito para que um patrimônio nacional não desapareça.
Ronaldo Dias da Silva é metalúrgico, tem 36 anos, mora em Itapevi, na Grande São Paulo, e está meio sem chão. Desde os dez anos de idade ele se tratava na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, o maior hospital filantrópico privado da América Latina. Já fez troca de válvula cardíaca, colocou marca-passo, foi submetido a cateterismo. Em janeiro, precisava passar por um procedimento para tratar uma arritmia grave, mas pela primeira vez nesse tempo todo teve que procurar outro lugar. Não havia material para realizar a intervenção. Ronaldo ainda não conseguiu fazer o tratamento no outro hospital, está afastado do trabalho, sem receber salário ou pensão, as contas estão apertadas. E dói muito, além de tudo, ficar sem o amparo do hospital onde conhece todo mundo e todo mundo conhece sua história. “Passei minha vida sendo atendido lá. Foi onde encontrei ajuda.”
Instituição centenária de importância vital para a rede pública de saúde, a Santa Casa enfrenta a maior crise de sua história. Tem dívidas que somam mais de R$ 800 milhões e respira graças a um empréstimo de R$ 360 milhões que recebeu da Caixa Econômica Federal. Serviços foram desativados ou funcionam precariamente, como o de Arritmia e Marca-passo onde Ronaldo era acompanhado, e o que realizava transplante de fígado. Durante dez dos onze anos em que chefiou o setor, o cirurgião Paulo Massarollo contava pelo menos quinze dessas intervenções por ano. Em 2015, foram duas e só porque os pacientes não podiam ser transferidos para outros centros. O desmonte entristece quem estava habituado a ser parte daquela que era uma das equipes mais importantes do País. “Dá muita tristeza ver que o atendimento acabou”, lamenta o médico, hoje dedicado às aulas na Universidade de São Paulo.
O hospital poderia ser apenas mais uma instituição de saúde em crise no País, como infelizmente há diversas pela nação. Mas o que acontece na Santa Casa de São Paulo é um espelho do que vive o Brasil nesse momento. Algo como um mini-Brasil: uma elite se reveza na cobertura enquanto o andar de baixo se desmancha. Quem a administra é a Irmandade, um colegiado de quase 500 pessoas, na sua maioria integrantes da elite paulistana. A sobrenomes tradicionais somam-se outros: alguns de projeção política, como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o ministro de Ciência e Tecnologia e Comunicação, Gilberto Kassab, ou integrantes do empresariado, como Paulo Skaf, presidente da Fiesp.
À espera de mudanças
Aqui, vale a pergunta que também cabe à situação brasileira: como tão ilustres pessoas, ou “irmãos”, denominação dos membros da Irmandade, permitiram que a Santa Casa chegasse a esse ponto? É verdade que o hospital sofre as consequências de um cofre público que não privilegia a saúde – e 75% de seus recursos provêm de atividades assistenciais públicas contratadas pelo Estado e município. Porém, além da verba insuficiente, um esquema de gestão considerado anacrônico por especialistas está na raiz do problema. “A organização das Santas Casas é arcaica e não reproduz a realidade da modernidade das organizações hospitalares”, considera a administradora hospitalar Vivian Ferreira, do Instituto Brasileiro de Educação em Gestão Pública.
A troca de cadeiras do comando, numa espécie de mais do mesmo, é outra peça desse mini-Brasil. Na Santa Casa, está tudo preparado para que, em abril, assuma o cargo de provedor o advogado Antonio Penteado Mendonça, da quinta geração de uma família de “irmãos”. Ele entrará no lugar do pediatra José Luiz Setúbal, que em 2015 foi eleito após a renúncia de Kalil Abdalla. Kalil deixou a instituição pela porta dos fundos, atingido por denúncias de irregularidades, e hoje tem R$ 56 milhões em bens bloqueados pela Justiça por acusação de improbidade administrativa. Mendonça participou da gestão de Kalil, mas nega que tenha tido conhecimento de ilícitos. “Nunca tive acesso aos atos de gestão do provedor dentro de suas atribuições”, diz. Dois anos atrás, quando era vice-provedor em exercício, o próprio Mendonça teve seu nome envolvido em uma questão delicada associada à Santa Casa. Na ocasião, o Ministério Público Estadual expediu uma recomendação para que ele não tivesse participação em ações do hospital contra a Unimed Paulistana – na época, a operadora devia R$ 20 milhões ao hospital particular da instituição, o Santa Isabel. O MPE argumentou que ele teria relações profissionais com a empresa.
Segundo a promotoria, o caso foi solucionado e não há investigação associada a Mendonça. Portanto, não existe impedimento para que ele assuma a direção do hospital. Porém, para uma instituição castigada por uma crise que dura três anos, a perspectiva da manutenção no poder das mesmas pessoas cansa. “É uma sinalização ruim”, afirma Paulo Azevedo, da instituição de ensino Insper. “Quando é preciso mudar de rumo, é importante que as pessoas responsáveis tenham condições de fazê-lo. Estar associado a experiências negativas pode ser prejudicial.”
Um colegiado de 500 pessoas administra a Santa Casa, em sua maioria membros da elite paulistana
Mendonça promete mudanças, incluindo mais transparência à administração. “Divulgaremos as principais decisões para os públicos interno e externo. Isto será feito inclusive em encontros com colaboradores”, assegura. Espera-se – e exige-se – que esta e as outras promessas sejam cumpridas. A Santa Casa é patrimônio do País. É dos médicos e dos funcionários que, apesar da precariedade, fazem o hospital funcionar. É, antes de tudo, do Ronaldo e dos outros milhares de brasileiros mais necessitados que dela tanto necessitam. É essa parte do Brasil que o País não pode deixar morrer.
Patrimônio do País
• Estima-se que tenha sido fundada por volta de 1560
• Foi berço de duas importantes escolas de Medicina: a da Universidade de São Paulo e a Escola Paulista de Medicina
• É um hospital de ensino e considerado referência em atendimentos de média e alta complexidade
• São feitos mais de 10 mil atendimentos por dia (exames, cirurgias, consultas e internações)
• 2 mil médicos trabalham lá
Fonte: Revista Isto É