O SUPREMO E AS ENTIDADES FILANTRÓPICAS
31/03/2017
No dia 23 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou integralmente procedente a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) nº 2.028, movida pela Confederação Nacional da Saúde, e declarou inconstitucional as alterações na Lei nº 8.212/91 promovidas pela Lei nº 9.732/98.
Especificamente a parte que determina as condições para caracterização de uma entidade de assistência social como filantrópica, ou melhor, beneficente de assistência social e, como tal, imune às contribuições para a seguridade social (INSS cota patronal, PIS/Cofins etc.), na forma do artigo 195, § 7º, da Constituição.
A decisão em causa do Supremo reputou que a Lei nº 9.732/98 feriu a Constituição tanto sob o aspecto formal quanto material.
É dizer, formalmente, a ofensa deu-se na medida em que a Constituição, em seu artigo 146, II, estabelece que cabe à lei complementar dispor sobre as limitações constitucionais ao poder de tributar, dentre as quais as imunidades tributárias, razão pela qual, sendo a Lei nº 9.732/98 do tipo ordinária, não poderia ter regulado o benefício aqui tratado.
Do ponto de vista material, o STF considerou que a Lei 9.732/98 ofendeu a Constituição ao estabelecer requisitos que desvirtuam o conceito constitucional de entidade beneficente de assistência social, exigindo, por exemplo, a promoção de tal fim gratuitamente e em caráter exclusivo, e terminam por limitar indevidamente a própria extensão da imunidade.
A decisão é de enorme impacto, pois diversas entidades têm dificuldades para obter ou manter o reconhecimento como beneficentes
A decisão é de enorme impacto para os setores de assistência social, educação e saúde, pois diversas entidades que atuam em tais áreas vêm tendo dificuldades para obter ou manter o seu reconhecimento como beneficentes de assistência social, situação agravada pelo atual Diploma que regula o assunto – Lei nº 12.101/09.
Por consequência, essas entidades se veem impedidas de fruir da imunidade às contribuições para a seguridade social, que representam carga tributária relevante, ou sujeitas a autos de infração pelo não recolhimento destas exações.
Desde a promulgação da atual Constituição, a qual requer a regulação da imunidade prevista em seu artigo 195, § 7º, por lei complementar, este assunto é cuidado por lei ordinária, inicialmente pela Lei nº 8.212/91 e atualmente pela Lei nº 12.101/09, em clara ofensa àquele Diploma. É certo que existe também a regulação do artigo 14 do CTN, recepcionado pela Constituição de 1988 como lei complementar, mas que prevê um número muito menor de condições a serem observadas do que as leis ordinárias a que nos referimos.
Tal inconstitucionalidade seguramente será arguida pelas entidades que vêm sofrendo com a obtenção ou a manutenção da certificação que atesta serem beneficentes de assistência social, visando aos mais diversos objetivos, tais como a restituição de eventuais valores recolhidos a título de INSS cota patronal, PIS/COFINS etc. ou a anulação de autos de infração lavrados pela Receita Federal para cobrar estes tributos. Isto sem falar na reparação de possíveis prejuízos sofridos pelas entidades por impedimento ou restrições em contratar em algumas modalidades com o Poder Público, por não terem sido reconhecidas como filantrópicas.
Causou-nos surpresa recente declaração do relator da reforma da Previdência, deputado Arthur Maia, de que a imunidade tributária voltada às entidades beneficentes é uma excrescência e que a decisão do STF foi a gota d’água para que sejam endurecidas as condições para o gozo de tal benefício, podendo restar estabelecida, por exemplo, a obrigatoriedade de as entidades atuarem integralmente em serviços gratuitos à população (via convênios com o SUS, por exemplo, no caso da saúde).
As entidades filantrópicas exercem papel fundamental no funcionamento das três grandes frentes sociais do país, quais sejam, a assistência social propriamente dita, a saúde e a educação – o que foi sabiamente reconhecido pela Constituição quando lhes concedeu imunidade tributária quanto a impostos e em relação às contribuições para a seguridade social. Para se ter uma ideia, na área da educação, tais entidades correspondem a 18% dos estabelecimentos de ensino básico, enquanto que na saúde, realizam por volta de 54% dos atendimentos do SUS.
É uma ofensa às entidades sérias e que prestam relevantes serviços ao país pretender puni-las por um fato de autoria do próprio Congresso, que agiu contra a Constituição ao regular o seu artigo 195, § 7º, por meio de lei ordinária, e não lei complementar.
Tão grave quanto é pretender limitar a extensão da imunidade às entidades que prestem exclusivamente serviços gratuitos à população, providência já tomada pelo legislador infraconstitucional no passado e agora repudiada pelo STF na Adin nº 2.028.
Além de afronta à Constituição e à autoridade do Supremo, restrição como a que ora mencionamos comprometeria fortemente a qualidade dos serviços das entidades que buscam financiar as suas atividades com outras fontes de recursos além dos contratos com o Poder Público. Tal queda de qualidade seguramente não afetará as classes sociais que usam de escolas particulares, planos de saúde etc., mas sim a parcela mais desamparada da sociedade.
Esperamos que o Legislativo e o Executivo reconheçam a importância das entidades beneficentes para a sociedade brasileira e regulem o tema aqui tratado com temperança, respeitando a Constituição e a jurisprudência do STF e protegendo os que mais precisam dos seus serviços.
Renato Nunes e Alexandre Zanettil são, respectivamente, sócio e consultor de Nunes e Sawaya Advogados
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Fonte: Valor Econômico