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CASO PARA UTI
15/08/2017

Ninguém sabe, ninguém viu, por que órgãos como a Organização Mundial de Saúde e o Ministério da Saúde escolheram este ano como o de homenagem à “gente que faz saúde”. É o que constatam as entidades que representam os profissionais do setor. Eliana Maria Esteban Calderoli, de 49 anos, é oficial administrativa e cuida dos prontuários no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo. Durante 14 anos, trabalhou na recepção do pronto-atendimento e do pronto-socorro, porta de entrada da angústia e do desespero das pes-soas. “Tem dia que a espera chega a três, quatro horas. As pessoas ficam nervosas, agressivas. Já levei empurrão, xingamento, cuspiram na cara de uma colega minha. Não tem segurança para evitar tumultos”, diz Eliana, que ganha cerca de 500 reais por mês. “Eu explico que o Estado não tem médico, que não faz concursos faz tempo, que muitos pediram demissão porque o salário é baixo. Mas as pessoas não têm de suportar tudo isso.”

Na maternidade do Hospital Geral de Vila Penteado, na mesma zona norte, a falta de pessoal atrapalha o programa de humanização do parto. “Somos quatro auxiliares de enfermagem por turno para atender 30 mães e 30 bebês”, diz Hévila de Oliveira Nunes, que, somando todos os adicionais, recebe 1.145 reais por mês. A copeira Maria das Graças (nome fictício) ganha salário líquido de 500 reais para servir refeições em um hospital da zona sul onde esse serviço é terceirizado. “É revoltante comparar a atenção que se dá ao paciente da rede pública com aquela que se oferece nos hospitais privados”, afirma. Nenhuma dessas profissionais vê no ano escolhido para homenageá-las razões para comemorar.

“Sem valorização profissional, não há ‘homenagem’”, diz Célia Regina Costa, 48 anos, presidente do Sindsaúde, entidade que representa aproximadamente 91 mil trabalhadores da rede pública de saúde do estado de São Paulo. “Vivemos sem perspectivas. Os profissionais não têm como crescer nas suas funções. Falta plano de carreira”, denuncia. O profissional mais dedicado e empenhado, que procura fazer cursos e ampliar suas qualificações, é tão valorizado pela administração quanto quem trabalha para cumprir tabela. Essa desmotivação do profissional afeta diretamente a vida do paciente e compromete a almejada humanização dos serviços. “Como humanizar o serviço se a relação com o profissional é desumana?”, pergunta Célia.

A insatisfação leva os trabalhadores a sair em busca de outras ocupações, de novas perspectivas, inclusive os médicos. Segundo pesquisas feitas por entidades de classe, nos últimos anos os salários vêm caindo e a carga horária aumentando. Mais da metade dos médicos da rede pública tem três ou mais empregos e ganha menos de 6 mil reais por mês.

O neurocirurgião Cid Carvalhaes, 60 anos, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, assinala que os profissionais da saúde trabalham em situações muito adversas, com equipamentos precários, equipes reduzidas e até sob ameaças físicas. “Não há uma política de recursos humanos nem uma política de educação continuada, de qualificação, de adequação profissional. Estamos à mercê de governos, de interesses eleitoreiros. As coisas acontecem ao acaso. Alguns são contratados pelas chamadas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), outros passam em concursos meio camuflados, e assim melhoram o salário. Não há política de incentivo.”

Nos últimos governos, segundo Cid Carvalhaes, o que se tem visto é a desobediência às leis do Sistema Único de Saúde (SUS), com o serviço público oferecendo suas instalações e equipamentos à iniciativa privada e o Legislativo aprovando leis sem sequer ouvir os conselhos municipais e estaduais de saúde. Carvalhaes cita o exemplo da criação das unidades de Atendimento Médico Ambulatorial (AMA) pelo então prefeito de São Paulo, José Serra.

Cargos de confiança

O problema do congelamento dos salários vem sendo “enfrentado” pelos governos à base de adicionais já apelidados de “penduricalhos”. O caso de Eunice dos Santos, 60 anos, é exemplar. Auxiliar de enfermagem há 28 anos no Hospital do Mandaqui e funcionária pública há 33, seu salário “base” é de 125 reais. Para chegar a 1.400 recebe cinco gratificações diferentes, além de adicional por tempo de serviço, adicional por insalubridade, auxílio-transporte e abono por aposentadoria.

Hoje Eunice trabalha no laboratório, onde coleta sangue para exame. “Fui me cansando de ver tanta gente doente, malcuidada, eu mesma fui ficando doente”, diz. O laboratório é terceirizado. “Os cargos de chefia viraram cargos de confiança. Os chefes estão mais preocupados em agradar quem os indicou do que em cobrar resultados. Os pacientes são mantidos em enfermarias de seis leitos, sem respeito nem privacidade. As auxiliares de enfermagem não dão conta do trabalho, quem não consegue ajuda faz suas necessidades na cama.”

Para maquiar essa situação, têm sido apresentadas soluções como as organizações sociais (OS), que recebem do Estado a administração de hospitais e unidades básicas de saúde. “As OS são mais ágeis, mas restringem o atendimento. Cumprem o contrato. Já o serviço público sempre atende todos, ninguém fica fora”, observa Eunice, preocupada com a possibilidade de terceirização do pronto-atendimento e do pronto-socorro. Eunice é uma dos 20.121 auxiliares de enfermagem de um total de 91.990 trabalhadores da saúde vinculados ao serviço público de São Paulo. Em números, os médicos são 13.929 no estado, seguidos dos auxiliares de serviços, com 9.999. Os enfermeiros são 3.879.

Eliana Calderoli, do Nova Cachoeirinha, conhece bem essa cadeia de profissionais fundamentais para a cura do paciente e a humanização no atendimento. A partir da recepção, o paciente vai se sentir seguro e bem encaminhado, ou desassistido e em pânico. A tarefa não é fácil. Em dias normais, um médico atende na emergência e dois no pronto-atendimento, um ortopedista e um pediatra. “Chegou com um problema cardíaco, vai para outro hospital. Quando falta profissional, o chefe do plantão já avisa o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e o Resgate dos Bombeiros para que não tragam pacientes com esse tipo de problema”, relata Eliana. A situação é pior no fim de semana.

SUS, sem direitos

A falta de funcionários dificulta a implantação do parto humanizado nos hospitais da rede pública de saúde. No Hospital Geral de Vila Penteado, zona norte, o programa é introduzido aos poucos. Já foram implantados o alojamento conjunto, o “projeto canguru” – quando a criança é mantida sobre a barriga da mãe –, reduzido o número de cesáreas e evitada a episiotomia, corte no períneo que supostamente facilitaria a passagem do bebê. “Mas faltam tempo e gente para dialogar com as mães, o mais importante”, diz a auxiliar de enfermagem Hévila Nunes. Hévila tem 30 anos e está há sete no serviço público. “Gosto do que faço e quero continuar fazendo. Mas é preciso investir em pessoal e treinamento. Em muitos lugares, o pré-natal é terrivelmente malfeito. As mães chegam aqui sem noção de nada”, lamenta.

As diferenças revoltam a copeira Maria da Graça, que está fazendo faculdade de Nutrição e pretende trabalhar em hospital público. “Não me conformo que um paciente do SUS receba menos consideração que um paciente de convênio”, reclama. O paciente do SUS não conhece seus direitos, por isso não se queixa. Agradece quando consegue um leito e um prato de comida.

A auxiliar de enfermagem recebe o paciente, mede a pressão, a temperatura, higieniza e muitas vezes serve alimentação e medica.  É peça-chave na cadeia de atendimento, que pode salvar ou não o paciente. “Os profissionais de saúde funcionam em equipe. Se o trabalho não for bem-feito na lavanderia, o esforço do cirurgião pode ser inutilizado por uma infecção”, explica Célia Regina, do Sindsaúde. Se o desempenho de todos forma uma cadeia de trabalho, o ideal seria que nos organizássemos numa mesma instituição. “Entre as nossas prioridades está a unificação de todos”, diz Célia. “A divisão entre os profissionais também é prejudicial à saúde.”


SUS: 1 real por dia, 2 bilhões de procedimentos
Ver o SUS como sinônimo apenas de filas, péssimos serviços e desrespeito ao paciente é contribuir para o retrocesso do maior e mais ousado programa de saúde pública do mundo. Dizer que é um sistema pobre para pobres é entregar a saúde dos nossos filhos e netos nas mãos dos convênios e seguros, em que predominam as leis de mercado.

O SUS realiza cerca de 2,21 bilhões de procedimentos por ano, 12 milhões de internações. Conta com 6.200 hospitais vinculados e 63 mil unidades de saúde. Cuida de 140 milhões de brasileiros que não têm acesso a nenhum outro serviço médico. E ainda se ocupa de boa parte dos 41 milhões que têm planos de saúde, mas são “abandonados” quando passam a “custar” caro demais.

Esse é o tamanho do SUS. Mas o retrato que fica, reforçado pela mídia, é o das longas esperas, profissionais insuficientes, falta de vagas e leitos, exames que demoram e cirurgias que chegam tarde demais. Principalmente quando alguém morre na fila, mesmo que a morte nada tenha a ver com falta ou demora no atendimento. Toda vez que isso acontece, mais pessoas passam a sonhar com um plano de saúde, como se fosse garantia de vida para elas e seus familiares. 

A criação do SUS é resultado de décadas de militância dos movimentos sanitaristas, serve de modelo para países pobres e em desenvolvimento e nada deve a modelos como o sistema canadense e de alguns países europeus, nos quais não se paga nada pela saúde. Mas o investimento do Brasil em saúde é pelo menos quatro vezes menor que a média de países europeus. União, estados e municípios investem cerca de 72 bilhões de reais por ano, o que significa 411 reais por habitante – pouco mais de 1 real por dia por pessoa, para um atendimento que inclui todas as cirurgias mais caras, os transplantes mais complexos, 150 milhões de consultas e 300 milhões de exames ambulatoriais.

Se o SUS não andar bem, todo o sistema de saúde andará mal. O crescimento dos gastos privados – já são 87 bilhões de reais por ano – indica que o Estado está deixando de fazer sua parte. E que o sistema está passando do modelo público e universal – como prevê a Constituição – para um sistema de mercado, que gera renúncia fiscal de até 9 bilhões de reais por ano. Hospitais públicos atendem planos privados. Infra-estrutura e equipamentos públicos beneficiam empresas e uma parte privilegiada da população. Os planos não reembolsam o SUS, como deveriam, quando um “cliente” seu é atendido na rede pública.

O sistema sofre, ainda, com investidas que defendem, por exemplo, a transferência de instituições públicas para o comando das OS ou para as Oscip. Salvar o SUS requer dinheiro e credibilidade que só virão com o apoio da classe média, das forças sindicais e de atitude política. Assim, poderia atuar como um sistema ágil e mais humano. E não correria os riscos que corre diante dos interesses econômicos.


Fonte: Rede Brasil Atual - RBA