A PORTARIA 3992, DE 28/12/2017, E A LEI COMPLEMENTAR 141/2012
31/01/2018
O início imediato da vigência da Portaria 3992, de 28/12/2017, do Ministério da Saúde, é o retrato fiel da falta de planejamento do governo federal, à luz do seu artigo 4º: “A Diretoria-Executiva do Fundo Nacional de Saúde – FNS/SE/MS e o Departamento de Informática do SUS – DATASUS, em articulação com as áreas técnicas pertinentes do Ministério da Saúde, adotarão as providências necessárias à implementação do disposto nesta Portaria em até trinta dias após a data de sua publicação”(grifo nosso). Mas, o ano de 2018 começou antes do término desse prazo e os recursos de janeiro teriam que ser transferidos, portanto, antes desse prazo. O que se viu, então? Em menos de 10 dias úteis, mais de 5.570 municípios e 27 estados foram chamados a abrir novas contas bancárias (portanto, mais de 11.140 contas municipais e 54 contas estaduais – metade para custeio e metade para investimento) e receberam esclarecimentos iniciais por meio de nota e videoconferência do Fundo Nacional de Saúde, que merece elogios pelo grande esforço realizado para operacionalizar em prazo recorde essa decisão publicada no apagar das luzes de 2017.
É importante destacar que, com certeza, esse esforço do Fundo Nacional de Saúde foi muito maior que o necessário, à luz de uma falsa expectativa criada por parte das autoridades superiores do Ministério da Saúde, em conjunto com parte dos dirigentes das entidades de representação dos gestores estaduais e municipais durante todo ano de 2017, a saber, que a flexibilização do uso dos recursos transferidos fundo a fundo seria ampla, total e irrestrita – por meio de uma só subfunção orçamentária, uma só ação orçamentária e uma só conta bancária – e obedecendo tão somente os respectivos planos de saúde (como se o planejamento ascendente previsto na Lei 8080/90 e na Lei Complementar 141/2012 fosse o mero resultado da simples soma de objetivos e metas estabelecidas de forma segmentada nos planos de saúde de mais de 5570 Municípios e 27 Estados – e, como se sabe, o “todo” é muito mais do que a soma das partes, especialmente em termos de planejamento em saúde).
Não há nenhuma dúvida que ainda será preciso muito esforço de esclarecimento por parte do Fundo Nacional de Saúde. É uma pena que a Recomendação 06, de 10/03/2017, do Conselho Nacional de Saúde, que propunha um processo de transição para essa mudança, e de forma mais transparente e participativa, tenha sido ignorada pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Nesse sentido, considero a Portaria 3992/2017 ilegal, por se tratar de critério de transferência de recurso, ainda que restrita ao financeiro, para Estados, Distrito Federal e Municípios (descumprindo o artigo 17 da Lei Complementar 141/2012).
Considerando a instabilidade do momento político e econômico que vive o país nos últimos 20 meses, tenho sido contrário a qualquer proposta de mudança originada do atual governo, exatamente por carecer de legitimidade nesse contexto, especialmente à luz da Emenda Constitucional 95/2016, que reduzirá recursos federais para o SUS até 2036: não há como dissociar isso dessas mudanças de critérios relacionados ao financiamento do SUS presentes na Portaria 3992/2017, nem dissociar da queda de receita decorrente da forte recessão econômica de 2016 e 2017. Além disso, alguns dos argumentos utilizados para justificar essa mudança pelas autoridades superiores do Ministério da Saúde, em conjunto com parte dos dirigentes das entidades de representação dos gestores estaduais e municipais, carecem de evidência empírica, como por exemplo, a afirmação reiterada da existência de “mais de 800 caixinhas” para a transferência e movimentação financeira dos recursos: recente estudo¹ “As transferências de recursos do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estaduais e municipais de saúde em 2016” - Nota Técnica Nº 46 – DISOC - janeiro/2018, publicado pelo IPEA, concluiu pela existência de um número muito menor que essas “800”. Uma possível explicação desse número perto do milhar esteja relacionada ao registro histórico de muitos anos (total de contas ativas e inativas), mas compete a quem o propaga informar a fonte e a metodologia de apuração.
Mas, como a Portaria MS 3992/2017 está gerando efeitos operacionais desde os primeiros dias de janeiro de 2018, considero importante, além dos aspectos tratados nos artigos publicados na Domingueira 02/2018 (de minha autoria) e na Domingueira 03/2018 (de autoria de Lenir Santos), trazer à luz alguns dispositivos da Lei Complementar 141/2012 que dialogam direta ou indiretamente com a citada portaria. O objetivo é alertar Conselhos de Saúde e gestores para a necessidade de cumprimento de um conjunto de obrigações legais pelo Ministério da Saúde, para contribuir tanto com o aprimoramento do processo de planejamento dos Estados, Distrito Federal e Municípios, como para fortalecer os Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde no cumprimento do seu papel propositivo, de fiscalização e de monitoramento das políticas de saúde e do planejamento e execução das ações e serviços públicos de saúde.
Assim sendo, conforme a Lei Complementar 141/2012:
a)Artigo 17, §1º:
§ 1º O Ministério da Saúde definirá e publicará, anualmente, utilizando metodologia pactuada na comissão intergestores tripartite e aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, os montantes a serem transferidos a cada Estado, ao Distrito Federal e a cada Município para custeio das ações e serviços públicos de saúdeEnquanto a Comissão Intergestores Tripartite não submeter ao Conselho Nacional de Saúde para análise e deliberação os novos critérios pactuados para transferências de recursos fundo a fundo, ela deveria submeter imediatamente para esse fim os critérios que estão em vigor para cada ente da Federação.
Além disso, o Ministério da Saúde deveria ter publicado no Diário Oficial da União essa informação detalhada das transferências fundo a fundo em 2018 para todos os entes da Federação no momento em que o Projeto de Lei Orçamentária de 2018 foi encaminhado ao Congresso Nacional (prazo constitucional: 31/08/2017), bem como ter informado ao Conselho Nacional de Saúde esses valores detalhados. Com isso, os gestores estaduais e municipais teriam os valores corretos para a elaboração da programação de saúde nos respectivos projetos de lei orçamentária de 2018, informação importante para o processo de planejamento da gestão. Da mesma forma, todos Conselhos de Saúde teriam mais subsídios para analisar a proposta orçamentária que deveria ter sido submetida para análise e aprovação do controle social antes do encaminhamento do Poder Executivo ao respectivo Poder Legislativo, como determina a Lei Complementar 141/2012. Se essa informação ainda não ocorreu por parte do Ministério da Saúde, é preciso que seja feita com a máxima urgência; se o Conselho Nacional de Saúde a recebeu naquele prazo, é preciso que disponibilize imediatamente no seu sítio eletrônico.
b)Artigo 17, §2º:
§ 2º Os recursos destinados a investimentos terão sua programação realizada anualmente e, em sua alocação, serão considerados prioritariamente critérios que visem a reduzir as desigualdades na oferta de ações e serviços públicos de saúde e garantir a integralidade da atenção à saúde.
Este parágrafo estabelece critérios para a programação dos recursos federais do SUS para investimentos, a saber: “reduzir as desigualdades na oferta de ações e serviços públicos de saúde e garantir a integralidade da atenção à saúde”. Nessa perspectiva, o Ministério da Saúde deveria ter submetido para análise e aprovação do CNS, antes do governo federal encaminhar o Projeto de Lei Orçamentária de 2018 ao Congresso Nacional, a programação dos investimentos a serem realizados em 2018 com recursos federais, de modo a evidenciar o cumprimento desses critérios. Além disso, tais critérios também deveriam ter sido obedecidos nas pactuações da Comissão Intergestores Tripartite e também submetidos à análise e deliberação do Conselho Nacional de Saúde, bem como informados aos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde para que possam exercer o papel de fiscalização e controle da aplicação de recursos do SUS. Se essa informação ainda não ocorreu por parte do Ministério da Saúde, é preciso que seja feita com a máxima urgência; se o Conselho Nacional de Saúde a recebeu naquele prazo, é preciso que disponibilize imediatamente no seu sítio eletrônico.
c) Artigo 17, §3º:
§ 3º O Poder Executivo, na forma estabelecida no inciso I do caput do art. 9º da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, manterá os Conselhos de Saúde e os Tribunais de Contas de cada ente da Federação informados sobre o montante de recursos previsto para transferência da União para Estados, Distrito Federal e Municípios com base no Plano Nacional de Saúde, no termo de compromisso de gestão firmado entre a União, Estados e Municípios.
O Ministério da Saúde deveria ter informado aos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Saúde (e Tribunais de Contas a que estão submetidos os entes da Federação), após a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2018 (que ocorreu em dezembro de 2017), os valores a serem transferidos fundo a fundo para Estados, Distrito Federal e Municípios em 2018, de modo a evidenciar a relação desses valores com os objetivos e metas do Plano Nacional de Saúde e com as pactuações estabelecidas na Comissão Intergestores Tripartite. Se essa informação ainda não ocorreu por parte do Ministério da Saúde, é preciso que seja feita com a máxima urgência; se o Conselho Nacional de Saúde a recebeu naquele prazo, é preciso que disponibilize imediatamente no seu sítio eletrônico.
Portanto, em conclusão, esses dispositivos da Lei Complementar 141/2012 são muito importantes para o cumprimento de vários dispositivos da Portaria 3992/2017, porque tornarão transparentes de forma simples e sistematizada informações necessárias para a correta aplicação dos recursos financeiros do SUS transferidos pelo Fundo Nacional de Saúde centralizada em duas contas bancárias – custeio e investimento – para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde. Afinal, é sempre bom lembrar, esses gestores deverão comprovar a aplicação dos recursos financeiros recebidos em 2018 não somente pela comprovação da correta classificação orçamentária nas subfunções dos empenhos, liquidação e pagamento das despesas, mas também no detalhamento destas dentro de cada subfunção segundo as pactuações estabelecidas na Comissão Intergestores Tripartite e em outros atos próprios do SUS. Em resumo, os gestores precisarão de um controle interno muito mais rigoroso que o atualmente existente na utilização dos recursos recebidos do Fundo Nacional de Saúde e, também, nos termos da Lei Complementar 141/2012, terão que garantir aos Conselhos de Saúde recursos necessários para aumentar a qualificação técnica dos conselheiros, inclusive por meio de contratação de consultoria técnica independente para esse fim junto às respectivas comissões de orçamento e financiamento.
Fonte: Domingueira da Saúde