ENDIVIDADA, SANTA CASA DE SP MANDA CORTAR 25% DA CARGA HORÁRIA DOS MÉDICOS
27/04/2018
A dona de casa Ana Felix da Silva, 63, passou a véspera do último Natal fazendo uma ressonância magnética na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. O resultado devia ficar pronto em 45 dias, mas a espera já dura quatro meses. Cada vez mais frequentes, as filas para agendar exames e cirurgias na Santa Casa devem aumentar nos próximos meses se a direção da entidade levar a cabo uma determinação comunicada aos funcionários no começo do mês: com uma dívida acumulada de R$ 700 milhões, o maior hospital filantrópico da América Latina decidiu cortar 25% da carga de trabalho dos médicos.
O comunicado para reduzir as horas de trabalho na Santa Casa foi repassado pela diretoria de forma clara, embora informal. Nenhum e-mail ou circular foi distribuído.
O recado foi dado para um grupo de dez diretores, contou ao UOL um médico que esteve no encontro. "A diretoria chamou os diretores de todos os departamentos e comunicou a necessidade de cortar 25% da carga horária dos médicos. Depois, esses diretores reuniram os chefes de serviços de suas respectivas unidades como clínica média, cirurgia, ortopedia, pediatria-- e repassaram o recado", contou o médico, cuja identidade foi preservada.
A Santa Casa tem atualmente 1.200 médicos que, em geral, são contratados para trabalhar 20 horas semanais. Com essa equipe, são atendidos mensalmente 90 mil pacientes pela rede pública, realizados 200 mil exames e cerca de 2.300 cirurgias. O número, no entanto, pode cair com o corte.
A recomendação foi para que esses diretores escolham a forma mais adequada para diminuir a carga horária em seu departamento. "Alguns vão cortar horas trabalhadas, outros vão reduzir pessoal mesmo. "Atualmente, 77% de nossas despesas são com pessoal, o que foge dos padrões desta atividade no mercado nacional", justifica a Santa Casa. "Em algumas áreas há excesso de contingente, que precisam ser adaptadas [...] para que assim possamos dar continuidade às atividades."
A preocupação entre os profissionais que ficam é menos com o contracheque 25% mais enxuto e mais com o volume de trabalho, que vai aumentar para aqueles em horário de expediente. A decisão também deve comprometer a formação de novos médicos, já que trabalham ali cerca de 800 residentes de todo o Brasil. "Somos grandes formadores de ortopedistas. Muitos seguem trabalhando ali depois de formados. Esses alunos não podem ficar sem supervisão."
Fila da cirurgia
Com menos gente trabalhando, uma questão importante será o setor de cirurgia, já bastante comprometido. Desde o começo do ano, a Santa Casa vem cancelando cirurgias não emergenciais por falta de material, um problema que a instituição garante ter resolvido. Fabiana Soares da Silva, 36, espera por uma operação há quase dez meses. Ela foi diagnosticada com um tumor ósseo na região da coxa em 2016. "Foram feitos 13 ciclos de quimioterapia, o último em 21 de julho do ano passado", contou. "Parei a quimio para me preparar para a cirurgia, mas até hoje, nada."
A longa espera lhe trouxe complicações. Nove meses sem a quimioterapia, e o tumor invadiu a bexiga. Na última vez em que foi recebida na Santa Casa, há duas semanas, os médicos voltaram atrás e desaconselharam a operação em razão de sua complexidade. "Antes diziam que estavam aguardando uma data, agora não querem mais operar", lamenta Rafael Santos, namorado de Fabiana.
Yasmim Nazario, 22, também foi desencorajada a fazer uma cirurgia. Desde pequena, Yasmim sofre de Artrite Reumatoide Juvenil. Ela alega que, de tanto receber tratamento com corticoide (hormônios sintéticos que imitam o produzido pelas glândulas suprarrenais) para alívios das dores, a ponta do fêmur esquerdo necrosou.
Os médicos da Santa Casa aconselharam uma cirurgia, sua mãe fez o pedido, e, agora, o hospital alega não ter onde comprar o material para realizar a operação.
"Há três anos, ela saia sozinha de casa. Depois da necrose, qualquer movimento machuca o quadril. Ela precisa de apoio para andar e tem dificuldade até para colocar roupa", contou a irmã da paciente, Karina Nazario de Lima, 21.
Michelly Cristina Felix, 35, não se conforma com a espera da mãe, a paciente que aguarda o resultado da tomografia há quatro meses. Ana tem um nódulo na suprarrenal e calcificação do fígado. "Sem o exame não sabemos se ela precisa operar", diz Michelly.
Ela conta que, há uma semana, os funcionários da Santa Casa disseram que as imagens já estavam prontas, mas que não havia médico para fazer o laudo. Michelly, então, pediu as imagens a fim de levar à avaliação do cirurgião, mas ouviu que a impressora estava quebrada.
Sobre esses casos, a Santa Casa informou que "as pacientes mencionadas estão sendo atendidas na instituição: Ana Felix da Silva terá a liberação do laudo da ressonância, Yasmin Nazario de Lima e Fabiana Soares da Silva estão em acompanhamento médico, com consultas realizadas ao longo de 2017 e 2018."
Desde 1562
Uma das mais antigas Santas Casas do Brasil, a irmandade da capital paulista foi fundada em 1562. Mas a crise financeira se arrasta desde o início da década. Em julho de 2014, o pronto-socorro chegou a ficar 28 horas de portas fechadas por falta de recursos. Após o fechamento, uma auditoria privada apontou irregularidades como
supersalários, fraudes em contratações e compra de materiais superfaturados. A Justiça chegou a quebrar os sigilos bancários, fiscal e dos cartões do então provedor, Kalil Rocha Abdalla, que renunciou ao cargo. Em junho de 2015, a nova interrompeu as cirurgias não emergenciais e mandou embora 1.397 funcionários, 1.050 da área administrativa e 184 médicos.
Diretor da AMB (Associação Médica Brasileira), o médico Carlos Alfredo Lobo Jasmim diz que a história centenária das Santas Casas está com os dias contados. Ele afirma que, "se uma consulta em um plano de saúde custa R$ 80, o governo paga R$ 10 para a Santa Casa", o equivalente a 12,5%. "Por não terem fins lucrativos, elas recebem isenção de alguns impostos e têm a possibilidade de receber doações. Elas sobrevivem por causa disso."
A crise não é exclusividade da Santa Casa de São Paulo. Atualmente, 90% desses hospitais filantrópicos estão endividados, segundo a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas. Em 2005, a dívida de seus 2.100 hospitais era de R$ 1,5 bilhão, em 2014 estava em R$ 15 bilhões e, hoje, é de R$ 22 bilhões. Desse montante, R$ 2 bilhões se referem a débitos com bancos, R$ 1,4 bilhão a passivos trabalhistas e R$ 3,6 bilhões a fornecedores.
Embora lamente a redução da carga horária médica na instituição em São Paulo, o diretor da AMB não acredita em muitas alternativas à direção do hospital, que viu sua dívida saltar de R$ 433,5 milhões em 2013 para os atuais R$ 700 milhões. "Essa é a opção que a administração encontrou. A tentativa é que a Santa Casa não feche, mas não sei até quando ela vai conseguir conviver com isso. É uma morte anunciada."
Fonte: UOL Notícias