Fosfoetanolamina é uma fantasia que mais fere do que ajuda
A fosfoetanolamina se tornou nos últimos meses um dos mais frequentes assuntos discutidos entre os profissionais que trabalham com oncologia.
Apesar dos avanços no tratamento do câncer e de que pacientes curados tenham se tornado comuns nos consultórios, a triste realidade é que o câncer ainda causa muitas mortes e muito sofrimento. Sofrem os pacientes e todos que os cercam –familiares, amigos e profissionais da saúde. Como oncologista, poucas situações são mais desafiadoras do que lidar com um paciente ou uma família em desespero.
Quando o câncer entra em nossas vidas, queremos bani-lo, temos a esperança que tudo volte a ser como antes e relutamos a aceitar que isso nem sempre é possível. Diante desta realidade, todos nós fazemos uma escolha, consciente ou inconscientemente: aceitamos a realidade –mesmo que aos poucos– e construímos novas formas de esperança ou negamos a realidade e deixamos que a esperança se transforme em fantasia. O câncer é impiedoso com fantasias, e, inevitavelmente, elas são quebradas, para o enorme sofrimento dos que as construíram. Todos os profissionais da oncologia já presenciaram esse triste processo, e, frequentemente, o tratamento do tumor é mais simples do que o tratamento das fantasias que ele provoca.
É da fantasia que gera a profusão de remédios milagrosos e terapias alternativas que prometem a cura do câncer. Todo oncologista aprende a conviver, tolerar e, por vezes, até respeitar práticas alternativas –a ponto de algumas delas, modernamente serem integradas à prática, após estudos sobre sua eficácia e segurança. Mas, em algumas situações, especialmente quando o manto da ciência é usado para encobrir o pensamento mágico, a convivência entre oncologia e terapia alternativa se torna difícil. A fosfoetanolamina é um destes casos.
O problema da comunidade científica não é, como vem sendo alegado pelos "pesquisadores" envolvidos na exposição de seres humanos de maneira irregular a uma substância experimental, em interesses financeiros, falta de apreço pelo português ou pelo Brasil, ou mesmo falta de empatia pelo sofrimento dos pacientes. São questionamentos relevantes de ordem ética, científica e a preocupação com as consequências para pacientes e para o SUS.
Como falar em ética e regras em pesquisa quando pessoas estão sofrendo e morrendo? Será que não deveríamos tomar medidas excepcionais quando pacientes estão desesperados? É especialmente por respeitar a solenidade desta situação tão comum que não devemos tomar medidas excepcionais e sim seguir as regras que garantem que não vamos adicionar mais sofrimento a essa situação. Pacientes e familiares têm o direito de se desesperar, já médicos e pesquisadores, não.
No passado, cientistas inescrupulosos usaram das mais diversas formas o poder que o desespero e a falta de informação de pacientes conferem para realizarem seu desejo por fama, por respeito e até por dinheiro. Escândalos como os experimentos nazistas e o estudo de sífilis em Tuskegee levaram governos e pesquisadores a perceberem que a ciência, descolada do respeito à autonomia do paciente e da honestidade, pode cometer crimes graves. Foi construído um sistema para impedir que isso se repetisse.
Pacientes devem saber exatamente o potencial da substância em estudo. Devem ser livres para entrar e sair de estudos e nunca podem ser forçados ou manipulados. A transparência deve ser total. Dados devem publicados, avaliados, hipóteses testadas repetidamente por diferentes grupos.
Cientistas sérios apresentam suas conclusões e suas dúvidas em congressos na frente de milhares de colegas que estão lá para aprender e para questionar cada detalhe. Dados referentes a centenas ou milhares de pacientes são necessários antes de declarar uma substância eficaz. Apelos emocionais não são lançados para apoiar dados –pois emoções não apoiam dados e sim colocam em questão sua qualidade e até sua própria existência. Do ponto de vista ético, a fosfoetanolamina não pode ser considerada um remédio, pois ainda não passou por todo esse processo.
A prática clínica e a pesquisa em biologia celular nos mostram todos os dias o adversário que enfrentamos. Drogas que no laboratório parecem funcionar e matam células cancerígenas podem não ser eficazes quando aplicadas ao paciente. Drogas que são eficazes, muitas vezes, deixam de ser para um paciente, pois o tumor se adapta, evolui e passa a resistir a elas. A célula cancerígena é flexível e adaptável e pode escapar de um único remédio de muitas maneiras diferentes.
Portanto, do ponto de vista científico, está claro que um remédio nunca será "a cura do câncer". As declarações sobre a polivalência da fosfoetanolamina, que age supostamente sobre qualquer tumor e em qualquer cenário clínico (seja tumor localizado ou disseminado) não fazem sentido do ponto de vista científico. Inibir o crescimento de células em laboratórios é uma coisa, em seres humanos é outra.
Não são só pessoas que auxiliam o progresso da oncologia, mas também instituições –hospitais, universidades, a indústria farmacêutica (que é um aliado fundamental e não um adversário, como muitos imaginam) e agências reguladoras. No Brasil, esta agência se chama Anvisa. Embora muitas vezes seus processos sejam por demais lentos, seu trabalho –em essência declarar uma droga como tratamento para uma doença no Brasil– exige cuidado, aderência absoluta às evidencias e liberdade de ação.
Pressão por autorização de drogas sem as evidências adequadas, ou pior, de liberações "extraordinárias" por pretensas razões humanitárias, seja esta pressão oriunda de setores da sociedade, ou mais grave ainda, de políticos com cargos públicos, é inaceitável. Uma universidade ser obrigada a fornecer uma substância sem valor científico comprovado pode ser o primeiro passo para o SUS ter que custear qualquer forma de terapia alternativa.
Como oncologista, eu rejeito a fosfoetanolamina como forma de tratamento científico para o câncer e não a indicaria em nenhuma situação. Isso pode mudar, se ela for eficaz em testes adequados e conduzidos de maneira ética e sem pressão externa sobre os pesquisadores. Mas não mudará a minha convicção de que fantasias ferem mais do que ajudam e de que, embora os pacientes possam fazer uso de seu livre arbítrio e usar a fosfoetanolamina de maneira independente, médicos, pesquisadores e governantes têm a responsabilidade de agir dentro dos limites da realidade e nunca estimularem fantasias que só podem terminar por causar mais sofrimento.