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Compliance na Saúde
Josenir Teixeira | 01/02/2017

O chamado brexit tem suscitado debates acalorados na Inglaterra. Sua aprovação pela população em junho de 2016, por plebiscito, deixou parte do mundo estarrecida. Este termo é usado para apelidar a saída do Reino Unido da União Europeia que deverá se efetivar em 2017.  

Não é de hoje que a Inglaterra se discute internamente. Thomas More foi estadista e filósofo inglês que morreu em 1535, há quase quinhentos anos. Em 1516 ele escreveu a obra Utopia que, na primeira parte, criticava a Inglaterra da época, que vivia momentos de expulsão de camponeses do campo em direção às cidades, além de perseguição e intolerância religiosas, cegueira da justiça e, na segunda parte, propunha a criação de uma sociedade alternativa, invertida, sem querer aqui parafrasear Paulo Coelho que escreveu com Raul Seixas a música com título homônimo.

Utopia quer dizer, grosso modo, lugar que não existe, justamente como imaginado pelo autor inglês, que viveria numa organização política e/ou social ideais. Assim, o substantivo feminino utopia passou a generalizar e a rotular situação ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos, mas inviável, na prática.

Utilizamos tal palavra para nos referirmos à intenção de atingimento da sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições políticas e econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade, e isso seria utópico, ou seja, inatingível, inalcançável. Pelo menos no cenário em que vivemos hoje no mundo e no Brasil. 

Partindo deste paralelo é possível fazer a seguinte provocação: seria utopia aplicar as regras de compliance na área da saúde no Brasil? Aplicá-las integralmente, diga-se, e não de forma fragmentada ou fatiada convenientemente ao bel prazer dos gestores. 

A rigor, a resposta a essa pergunta deveria ser sim, pois podemos e devemos (ou deveríamos) seguir e aplicar inteiramente as previsões legais no nosso dia a dia. Há expressão latina que ensina dura lex sed lex (a lei é dura, mas é lei), e deve ser cumprida sem flexibilizações individuais e subjetivas.

Em março de 2014, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de ação penal (n. 470) que ficou conhecida como “mensalão”. Mal nos recuperamos daquele impacto e, no mesmo março/2014, surgiram as notícias sobre escândalo ainda mais rumoroso e abrangente, descoberto por investigação conduzida pela Polícia Federal, fiscalizada pelo Ministério Público Federal e presidida pela Justiça Federal, chamada de Operação Lava Jato, conhecida por todos e que continua se estendendo até os dias de hoje, em suas diversas ramificações. 

É inegável que nos últimos anos a sociedade brasileira tem experimentado sensações diferentes do que até então assistia. Os resultados da operação da Polícia Federal, e também da apelidada de Zelotes, e de tantas outras, provocaram nos cidadãos a sensação de que as coisas mudariam sensivelmente dali por diante. 

A proibição de corromper (ou deixar ser corrompido) está prevista no Código Criminal desde 1830. O Brasil ocupa a septuagésima sexta (76ª) posição no índice mundial de percepção de corrupção (2015), sendo seus companheiros próximos a Bósnia, Índia, Tunísia, Burkina Faso e outras nações menos expoentes no cenário global e menos inspiradoras.

O mundo corporativo, incluindo o da saúde, exige dos seus administradores ações rápidas, práticas inovadoras, resultados eficientes e superávits expressivos, nem que para isso eles se valham de sua influência pessoal ou seu poderio econômico, o que pode conflitar com as regras de programa de integridade que contenha princípios que devam ser respeitados incondicionalmente.

Seria possível agir assim? Seria possível atingir êxitos retumbantes sem contaminação por práticas que feririam princípios éticos e códigos de conduta previamente estabelecidos pelas entidades ou mesmo posturas pessoais, lapidadas ao longo do tempo? Seria possível conciliar ética e sucesso? É possível ensinar ética a quem eventualmente não possui esta orientação de berço ou mesmo do seu exercício na vida, de forma correta? Seria possível aprender ética? Seria possível transformar um sujeito que não possui ou age com ética em alguém que passe a respeitar princípios coletivos importantes, mesmo que nem todos ajam assim nas suas práticas cotidianas? É um desafio, sem dúvida, difícil de ser enfrentando num país que possui passado histórico de dar um jeito nas coisas, princípio que normalmente não se coaduna com o respeito de normas corretas de postura. 

O termo compliance vem do verbo inglês to comply e significa “agir de acordo” com as regras legais, morais, éticas e de conduta diante das situações experimentadas por nós, comercial e pessoalmente falando. 

Terá o gestor da saúde força suficiente para fazer o certo, o adequado, o legal, mesmo que as pessoas que gravitem em torno dele atuem de forma diferente? Terá o profissional da saúde condições de fazer o certo mesmo que ninguém esteja fazendo e consciência para discernir que o errado é errado mesmo que todo mundo esteja fazendo? Tomara que sim.  

Em agosto de 2013 foi editada a lei federal n. 12.846, que tratou da “responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública”, conhecida como “lei anticorrupção”, que foi regulamentada pelo decreto n. 8.420/15.

Esta lei definiu os atos lesivos praticados contra a administração pública que ensejam punição e aplicação de multas às pessoas jurídicas e aos seus prepostos que agirem da forma nela indicada, além de prever atenuante para as empresas que possuírem “procedimentos internos de integridade”, conhecidos como compliance, que visam normatizar posturas das pessoas que trabalham nelas de forma a fazer com que ajam de maneira íntegra no desenvolvimento de suas ações do dia a dia, tendo por norte a regularidade da sua atuação em todos os seus aspectos.

A lei n. 12.846/13 prevê que “serão levadas em consideração na aplicação das sanções” (art. 7º) a quem a infringir “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.” (VIII)

O decreto n. 8.420/15 regulamenta referida lei e prevê que “programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.” (art. 41) 

O mesmo decreto prevê que de nada adianta a elaboração de programa de compliance geral, teórico, pelas entidades de saúde, pois “o programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual por sua vez deve garantir o constante aprimoramento e adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade.” (art. 41, parágrafo único)

Vivemos às voltas e sempre somos tentados a praticar pequenos atos de corrupção ou pequenas contravenções, que ocasionam as grandes sangrias dos cofres públicos em prol de poucos e em detrimento de muitos. É esse conflito existencial prático que somos instados diariamente a enfrentar e vencer, em prol de uma sociedade que respeite os direitos individuais e os coletivos. 

É bom para a sociedade que esta lei seja cada vez mais aplicada para fazer com que as pessoas cumpram suas obrigações éticas, morais e legais. Por bem ou por mal.