Banco de Olhos de Sorocaba: do quase fechamento a entidade referência
Banco de Olhos de Sorocaba: do quase fechamento a entidade referência
24/03/2015
O Banco de Olhos de Sorocaba (BOS), principal captador de córneas do Estado de São Paulo e o que mais realiza transplantes no país, esteve prestes a fechar um dia. Foi em 1984, cinco anos depois de ter sido criado como instituição filantrópica por um grupo de cidadãos sorocabanos.
“Começou com um grupo de pessoas bem-intencionadas ligadas ao Rotary, lojas maçônicas e Lions, preocupadas em montar uma instituição com a intenção de captar córnea”, conta o superintendente do BOS, Edil Vidal de Souza. A criação do banco foi estimulada por José Archimedes de Paula Santos, advogado e filantropo da cidade, ligado ao Rotary Club e paciente do oftalmologista Tadeu Cvintal, que atendia na capital paulista. “O Dr. Cvintal era uma das pessoas mais engajadas, naquela época, na questão de doação de córnea. De Paula Santos levantou a ele a possibilidade da criação do banco de olhos, convidou várias pessoas e fundaram a instituição em 1979″, completa Souza. O estímulo e o ânimo para manter a instituição, no entanto, foram arrefecendo com o tempo e as dificuldades de gestão. Com isso, a operação do banco de olhos ficou comprometida, e a melhor coisa a ser feita, ao que parecia à época, seria encerrar as atividades.
Para conduzir o fechamento convidaram o administrador hospitalar Pascoal Martinez Munhoz, que à época era gestor da Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba. A ideia era que Munhoz encerrasse as atividades do BOS reaproveitando os equipamentos e materiais para a Santa Casa local. Mas em vez de fechar a instituição, o gestor resolveu entender como funcionava um banco de olhos.
“Visitei muitas instituições. Fui a Campinas (SP) e São Paulo (capital), que tinham os maiores bancos de olhos na época. Aos poucos fomos implantando novos meios de gestão, novas técnicas e o BOS foi crescendo”, conta Munhoz, hoje membro da diretoria do Grupo BOS.
Do hospital à funerária
Uma das mudanças de gestão mais importantes realizadas pelo administrador foi a transferência do BOS para o interior da única funerária existente à época na cidade. O banco de olhos funcionava, então, em uma sala dentro do Conjunto Hospitalar de Sorocaba, do governo do Estado. Com isso, a captação de córneas ficava restrita àquele centro médico. Com a transferência para “uma salinha no piso inferior” da funerária, nas palavras de Munhoz, a captação aumentou consideravelmente, uma vez que ali eram recebidos os corpos vindos de outros hospitais da cidade. “Isso também quebrou a vaidade dos médicos. Passamos para um local neutro, onde ninguém tivesse ingerência”, relembra Pascoal Martinez Munhoz.
Outra ação do administrador foi intensificar as campanhas de conscientização sobre a importância da doação de córnea. “Naquela época, falar em doação era um tabu, um desafio cultural. Então fizemos campanhas com a comunidade para conscientizá-la da importância da doação. Com isso, fomos aumentando também as doações.”
De acordo com Edil Vidal de Souza, superintendente do BOS, de 1984 a 1990 a gestão de Munhoz fez com que o Banco de Olhos de Sorocaba ganhasse projeção nacional, aumentando ainda mais seu volume de captação. “As córneas que chegavam a Sorocaba eram destinadas a outras localidades, como a Escola Paulista de Medicina (EPM) e a Santa Casa de Misericórdia − ambas na capital paulista −, porque a cidade não tinha um serviço hospitalar para utilizar esse volume de doação.”
Acompanharam as alterações de gestão o investimento em treinamento e tecnologia. Em 1993, uma equipe do BOS foi a Bogotá, capital colombiana, receber treinamento especializado no Instituto Barraquer de América. “Fomos um dos primeiros bancos de olhos a ter aprimoramento internacional; ainda não tinha curso no Brasil. Trouxemos toda a experiência internacional e começamos a implantar isso em Sorocaba”, conta Souza, que foi a Bogotá receber treinamento.
Com o aumento da captação de córneas, aprimoramento técnico e a projeção nacional, muitas pessoas começaram a se dirigir a Sorocaba imaginando que o BOS também realizava transplantes. “Foi aí que surgiu a ideia de construir um hospital. O Pascoal idealizou o projeto, foi buscar recurso nas esferas federal, municipal e estadual, junto a entidades e à comunidade local, e em 1995 foi inaugurado o Hospital Oftalmológico de Sorocaba”, relata o superintendente.
O quase fechamento do Banco de Olhos de Sorocaba em 1984 deu lugar, após três décadas e alterações de gestão e estratégias de investimento em tecnologia e formação, a um complexo hospitalar que ocupa, hoje, um terreno de 12 mil m2, com atendimento clínico e cirúrgico em oftalmologia e otorrinolaringologia, programas de residência médica e especialização, centro de educação infantil para filhos de funcionários e para a comunidade e academia de ginástica.
Com a criação do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) pelo Ministério da Saúde (MS) em 1997, e a regulamentação dos bancos de olhos no ano 2000 também pelo MS, a atuação do Banco de Olhos de Sorocaba foi referendada pelas normas adotadas e, ao mesmo tempo, em alguma medida, serviu de referência técnica para a adoção dessas normas. “Em 2003, tudo o que já estávamos implantando no BOS havia dez anos [em termos de procedimentos e critérios de conduta], virou norma nacional, uma RDC (Resolução da Diretoria Colegiada)”, narra o superintendente da instituição.
Hoje o Banco de Olhos de Sorocaba atende de 60% a 80% de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) e o restante de convênios e particulares, abarcando um total de 48 municípios no Estado de São Paulo. O SUS realiza um repasse de cerca de R$ 450 mil ao mês à instituição. São realizadas mais ou menos 400 captações de córnea ao mês e feitos, em média, 180 a 200 transplantes no mesmo período. Também mensalmente o BOS realiza mutirões para atender pessoas de outros Estados que precisam de transplante de córnea. “Todo o processo de avaliação depende de médicos e exames para a pessoa entrar na fila [única de transplante]. Esse processo era difícil para pacientes de fora [do Estado de São Paulo], que tinham que ir à consulta, depois agendar exame. A gente resolveu fazer esse evento com toda a equipe, com o processo do início ao fim. O mutirão é feito uma vez ao mês, aos sábados. São agendadas cerca de 300 pessoas do SUS, vêm em média 200, 220, e a gente consegue colocar uns 60, 70 pacientes na fila de espera. De acordo com a gravidade, alguns pacientes já ficam até por aqui para fazer o transplante na semana seguinte. Uma das principais dificuldades de transplante no país é que o paciente não tem acesso. Tem a córnea, tem hospital, mas o paciente não tem acesso”, explica Souza.
O gargalo da gestão
“É preciso ver o banco de olhos como um negócio rentável. Rentável não do ponto de vista financeiro, mas social, que vai render muitas córneas e recuperar muitos pacientes com deficiência visual.” A afirmação é da presidente da APABO internacional (Associação Pan-Americana de Bancos de Olhos), Luciene Barbosa de Sousa. Para Luciene, que foi diretora médica do Banco de Olhos de Sorocaba entre 1998 e 2012 e hoje é diretora técnica da Fundação Banco de Olhos de Goiás, a gestão nesse tipo de instituição é o gargalo da eficiência, principalmente nos bancos de olhos públicos.
“O grande problema é que as CNCDOs (Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos) de muitos hospitais se preocupam mais com os pacientes com morte encefálica para a doação de órgãos, e se esquecem do paciente com o coração parado para conseguir córnea. Em sua maioria os bancos de olhos são públicos e não têm gestão própria. Então, os repasses não vão para o banco de olhos diretamente, e sim para a instituição, que acaba usando o dinheiro para tapar outros buracos, e o banco de olhos fica sem dinheiro para contratar pessoas, para ter um plantonista que aborde a família de todos os possíveis doadores”, explica Luciene. “Aí você vê a diferença em relação aos bancos de olhos privados, e o Banco de Olhos de Sorocaba é um grande exemplo disso”, completa.
Para a especialista, a gestão de instituições que trabalham com a captação de córneas no país − incluindo as privadas − pode ser comprometida por uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que está prestes a ser lançada. Segundo notícia publicada no site da agência em abril do ano passado, “a proposta de resolução se aplicará a todos os Bancos de Tecidos, de qualquer natureza, que realizam atividades com um ou mais tipos de tecidos de origem humana no Brasil. O novo texto atualiza as regras vigentes e revoga as RDCs 220/06 e 67/08, atualmente em vigor, além de preencher a lacuna regulatória para os demais bancos em funcionamento no país que não possuem uma norma específica.” Ainda de acordo com a notícia publicada, a principal inovação da proposta é a “imposição de que os bancos de tecidos somente disponibilizem material biológico que esteja de acordo com as boas práticas criadas pelo regulamento”, revela.
A presidente da APABO internacional, que também integra a câmara técnica da Anvisa, informou que mais de 100 oftalmologistas que trabalham com bancos de olhos no país se manifestaram contrários às novas medidas da agência durante a consulta pública 13/2014, aberta no ano passado. “Por exemplo, a Anvisa vai exigir que dentro das instalações do banco de olhos exista o mesmo sistema de sala limpa usado no controle de fabricação de vacina. Você tem que usar roupas especiais, com risco mínimo de contaminação, praticamente zero, com fluxo alterado. Isso não existe em nenhum banco de olhos do mundo. É diferente com osso, por exemplo, que requer cuidados muito maiores do ponto de vista de contaminação do que a córnea. Mas eles (Anvisa) estão vendo isso como uma coisa única, independentemente se é banco de tecido ocular, de osso, do que quer que seja. A regra vai ser a mesma”, garante.
A consulta pública aberta pela Anvisa não tem efeito deliberativo. Luciene diz que a APABO brigou contra as medidas apresentadas e aguarda a publicação da resolução para saber se a pressão surtiu efeito. “São mudanças que vão elevar o custo do banco de olhos para se readequar em termos de tamanho, de material, de infraestrutura e de manutenção. Se todas as solicitações da Anvisa forem seguidas, a existência dos bancos de olhos no Brasil vai ficar muito complicada, mesmo para bancos de olhos privados, como o BOS, porque poderá ter dificuldades de se manter. É uma situação grave”, finaliza.