CARRETAS ADAPTADAS AJUDAM A DIMINUIR FILA DE ESPERA POR EXAMES E CIRURGIAS
27/08/2018
"A gente tinha uma África em São Paulo." Foi a partir dessa constatação, durante a visita a uma favela na zona leste de São Paulo, em 2000, que o endoscopista Roberto Kikawa, 48, decidiu que precisava fazer algo em benefício da saúde da população.
A inspiração para usar carretas veio do modelo do Sesi (Serviço Social da Indústria), criado para qualificação profissional. "Pensei que seria legal pegar aquelas carretas-cozinha e transformá-las em carretas médicas", afirmou Kikawa. Com essa ideia na cabeça, o médico começou em 2006 o processo de captação de recursos para a construção de um protótipo.
O projeto foi recebido com ceticismo pelos potenciais investidores, pois havia dúvidas sobre as viabilidades técnica e financeira. O médico apostou, então, em uma solução bem pessoal: usou sua rede de contatos com fornecedores de equipamentos hospitalares, pediu doações e colocou dinheiro próprio.
A primeira carreta ficou pronta em 2008. Oferecia exames de endoscopia, mamografia, cardiologia e oftalmologia, os serviços com maior demanda na rede pública.
Até 2010, quando foi assinado o primeiro convênio público, com a prefeitura de Lorena (SP), os atendimentos eram feitos com base em parcerias com sindicatos ou prefeituras para ações pontuais, sempre com usuários do SUS (Sistema Único de Saúde). O primeiro atendimento foi realizado em Santos (SP).
Kikawa percebeu que o modelo de gestão deveria priorizar não apenas a realização de exames, mas também um projeto de acesso integral à saúde (incluindo prevenção), tendo como base a tabela do SUS. Para o fundador do Cies (Centro de Integração de Educação e Saúde), o problema do SUS é de gestão dos recursos, e não a falta deles.
Dez anos depois de sua criação, o Cies soma 12 carretas, além de vans e outras estruturas móveis, como contêineres, que atendem em locais fixos em sistema de rodízio, e ultrapassou a marca de 2 milhões de pacientes atendidos em todos os programas. Do total, 1,9 milhão são da capital paulista.
Michele Campos, 37, entrou recentemente para esse grupo. "Quando cheguei para ser atendida, pensei que fosse sair daqui amanhã, mas a organização do serviço me surpreendeu", disse, logo após receber o laudo da ultrassonografia mamária.
A supervisora de operações havia sido atendida na Arena Sul, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Esse é um dos 16 pontos fixos do Cies na cidade e recebe, em média, mil pessoas por dia.
Michele chegou à Arena Sul por encaminhamento da UBS (Unidade Básica de Saúde) Vila Império. A consulta com a ginecologista foi em 8 de maio. O exame, agendado para 5 de julho, foi antecipado em uma semana pelo Cies.
No dia marcado, em menos de duas horas, ela passou pela triagem, realizou o exame e recebeu o resultado. A supervisora considerou satisfatório o tempo de três meses entre a primeira consulta e o retorno à ginecologista, com os exames, marcado para final de julho.
Mesmo aprovando o atendimento na Arena Sul, ela acha que o espaço precisa de melhorias na sinalização para facilitar a triagem e o encaminhamento dos pacientes. Para Michele, o projeto deve ser mantido como uma política permanente da prefeitura. "Cada região da cidade deveria ter três arenas como esta."
Na capital paulista, o convênio com a prefeitura começou em setembro de 2013. O Cies foi contratado para prestar atendimento em especialidades como oftalmologia, dermatologia, diagnóstico por imagem, cirurgias eletivas ambulatoriais e em hospital dia e exames de laboratório.
A Secretaria Municipal de Saúde fez o chamamento público para ampliar a oferta de serviços, prestando atendimento além da rede própria. A parceria pretende diminuir o tempo de espera por exames e procedimentos e agilizar os atendimentos.
Segundo dados da secretaria, o Cies respondeu por 79% da realização de ultrassonografias e 71% dos exames de endoscopia entregues em 2017. Realizou também 51% das cirurgias do aparelho digestivo e 19% das oftalmológicas do município.
Para ser atendido, o paciente é encaminhado pela rede de atenção primária de saúde municipal -como uma UBS ou AMA (Assistência Médica Ambulatorial). Na Arena Sul, o atendimento é realizado por 16 técnicos de enfermagem e enfermeiros, 35 médicos e 20 pessoas na área administrativa. Uma digitadora, que fica na sala de exame com o médico, agiliza a liberação do laudo.
Segundo Oswaldo Yoshimi Tanaka, diretor da Faculdade de Saúde Pública da USP, iniciativas como a do Cies ajudam a resolver apenas parte do problema: a enorme fila para a realização de exames mais complexos no SUS.
"Uma paciente que fizer uma mamografia em uma carreta e tiver um resultado de suspeita de câncer de mama terá que ir a um hospital para fazer uma biópsia e saber se irá precisar de cirurgia ou quimioterapia. O problema é que nessa hora temos outro gargalo", conclui Tanaka.
*Esta reportagem foi produzida pela equipe do Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde, patrocinado pela Roche.
Fonte: Folha de S. Paulo