COM GASTOS CONGELADOS, SAÚDE NO BRASIL VOLTA A PREOCUPAR
04/09/2018
Por causa do teto de gastos, orçamento está congelado no momento em que aumenta a necessidade de investimentos no SUS. A Saúde tem potencial para se transformar numa fonte de graves problemas e de desgaste para o próximo presidente.
Por causa das mudanças nas regras de reajuste de gastos do governo federal.
O orçamento da área foi reduzido e congelado no momento em que a pressão pelos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) aumenta.
Desde 2014, pelo menos 3 milhões de pessoas deixaram de ter planos de saúde por causa da crise econômica.
Sem assistência suplementar, esse grupo que pouco usava o SUS passou a depender dele.
“Será menos dinheiro para atender mais gente”, resume o presidente do Conselho dos Secretários Estaduais de Saúde, Rafael Vilela.
E aumento da demanda não deve ser efêmero. “Muitas das pessoas que saíram dos planos não querem ou não terão condições de voltar.”
O dinheiro curto pode afetar ainda a capacidade de resposta, num momento em que a população envelhece a pressão pela incorporação de novas tecnologias aumenta e que capacidade de planejamento se esgota.
“O aumento de custos é natural. Antes, quando alguém aparecia com dor de cabeça, o médico prescrevia analgésico. Hoje é encaminhado à tomografia.
Muito câncer é curável. Mas tratá-los custa”, diz o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Pelotas, Cesar Victora.
Média
Vilela tem avaliação parecida. Ele lembra que, em 1997, a média global dos gastos em Saúde era de 8% do PIB mundial. Em 2017, alcançava 9,9%.
“Os serviços em saúde são caros e crescentes em todo mundo.”
Por isso, Vilela classificou a nova regra de teto de gastos como “esdrúxula”.
“Ela engessa os gastos, não leva em conta o crescimento populacional.”
A Emenda Constitucional 95 congela os recursos em termos reais a partir deste ano.
O piso para o setor é calculado com base nos 15% da Receita Corrente Líquida de 2017, corrigido pelo IPCA. A regra vale até 2036.
Segundo Vilela, se a regra estivesse em vigor em 2003, o orçamento em Saúde em 2017 seria de R$ 50 bilhões.
“Bem menos do que os R$ 120 bilhões que foram desembolsados.”
Quando a proposta ainda estava em discussão, um estudo feito pela especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea).
Fabíola Sulpino Vieira, já indicava que o setor perderia recursos se fosse comparado com a regra anterior e num cenário com crescimento do PIB.
Quanto o maior o crescimento, maior seria a perda.
Por isso, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, integrante da Academia Nacional Medicina, considera essencial acabar com a regra no próximo governo.
“A questão é central: garantir a sustentabilidade econômica do SUS.”
Temporão aponta outro aspecto: recolocar a saúde no centro da agenda política e recuperar a credibilidade do ministério.
O posto sempre foi cobiçado nos governos. Não é à toa.
Ele é um dos maiores orçamentos da Esplanada – R$ 131,2 bilhões em 2018.
Além disso, tem grande capilaridade no País.
Os reflexos disso ficam claros quando se analisa a rotatividade no posto.
Em três anos, quatro ministros ficaram à frente da pasta.
Na equipe do atual ministro – Gilberto Occhi -, só um secretário é médico: o secretário executivo, Adeilson Cavalcante.
“Há grande desconfiança”, diz Temporão.
Isso e a falta de continuidade das políticas trazem o baixo impacto de algumas ações.
Como exemplo, Temporão cita a redução da cobertura vacinal. “Não há apelo para que a população se mobilize.”
A área sofre com as mudanças nas regras para ajuste de gastos federais, que provocaram uma perda para a Saúde de R$ 6,8 bi em três anos.
De acordo com cálculos da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) obtidos pelo Estado.
Eles comparam os valores estabelecidos pela regra do período entre 2016 e 2018 com o que seria aplicado, caso a regra anterior estivesse em vigor.
“A queda é significativa”, diz o presidente da entidade, Carlos Ocké.
Para se ter ideia, a quantia é o triplo do repassado pelo Ministério da Saúde em 2017 às ações de vigilância em saúde.
“Para além das dificuldades atuais, o congelamento da aplicação mínima em saúde pelo governo federal trará prejuízos para o acesso da população aos serviços do SUS”, avalia Fabíola.
O impacto da regra de teto de gastos se soma a uma tendência histórica da redução da participação de verbas federais para o financiamento da Saúde.
Quando o SUS foi criado, em 1988, a União era responsável por 72% dos gastos públicos na área. Essa participação é hoje de 43%.
A diferença foi assumida por Estados e municípios (25,8%).
Élida Graziane Pinto, procuradora de Contas do Ministério Público de Contas de São Paulo, classifica a mudança como erro.
“Neste período, a União expandiu a capacidade arrecadatória, que hoje é de 60%.
Caberia a ela verter mais recursos no SUS, porque é quem mais arrecada”, afirma.
Família
Quando se avalia o total de recursos da área, o que se vê é que os gastos públicos estão abaixo do que famílias dispensam para o setor.
As despesas com bens e serviços de saúde em 2015 representavam 9,1% do PIB.
Desse total, 5,2% era desembolsado por famílias. Só 3,9% eram governamentais.
“Essa é mais uma distorção, algo que chama a atenção sobretudo pelo fato de que o SUS é universal”, diz Elida.
Mais verba e gestão
Com R$ 3,60 por pessoa por dia, União, Estados e municípios financiam todas as consultas, internações, remédios, vacinas, exames e outros tratamentos ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Para o professor da Universidade Estadual de Campinas Gastão Wagner, só esse cálculo seria suficiente para mostrar que o gigantismo do orçamento do SUS é mito. “Os valores são restritos.
E, apesar das dificuldades, ele trouxe uma ampliação do acesso à saúde, sobretudo da atenção básica.”
Nos últimos anos, no entanto, ganhou força a tese de que saúde não precisa de recursos, mas de gestão.
A pesquisadora do Ipea Fabíola Sulpino Vieira discorda e diz não haver como separar os dois movimentos.
“É preciso investir para melhorar a gestão e, para isso, mais recursos são necessários.” Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) aponta para o mesmo caminho.
Feito com 14 secretarias estaduais e 2.570 cidades, o trabalho indicou que 74% das secretarias municipais tinham dificuldades para identificar os principais problemas da população.
E isso – afirma o secretário de Controle Externo do TCU, Marcelo Chaves – é fundamental para planejar os serviços e estabelecer o quanto é necessário se investir.
A falta de recursos e de gestão também traz reflexos na maneira como todo o sistema é organizado.
Uma análise feita pela pesquisadora do Ipea com dados de 2011 mostra que só 29 municípios do País (0,5% do total) tinham muitas estrutura de média e alta complexidade. Ali vivia 25% da população do Brasil.
Em 75% dos municípios, onde vivem 23% da população brasileira, não há serviço de média e alta complexidade. “Não há acesso igualitário de saúde.
Dependendo de onde se vive, a pessoa pode ter acesso a um serviço melhor.”
Consultor na área de saúde da Confederação Nacional dos Municípios, Denilson Magalhães concorda.
Para ele, a construção das políticas de Saúde devia partir dos municípios.
Ele cita o exemplo do Samu. “Como ambulâncias seriam usadas no Amazonas? O modelo não atendia o Estado.
Até que o sistema com lanchas foi organizado a pedido dos municípios.” Magalhães diz que o oposto ocorreu com o programa da Saúde da Família.
Ele começou no Ceará. “O uso de agentes comunitários se expandiu, foi adotado em outros Estados até chegar a ser uma recomendação da União.”
Melhores indicadores
A secretária executiva Cláudia Maria de França, de 53 anos, está sem plano de saúde há um ano e meio. Não foi uma decisão fácil.
Depois de deixar o emprego que oferecia assistência médica, ela contratou por um período um plano “falso coletivo”, mas as mensalidades comprometiam boa parte de seu orçamento.
Com a desistência, veio a insegurança. “Crescemos com a ideia de que um plano particular dá maior amparo.
Ficar sem ele é como se alguém dissesse: ‘A partir de agora, você estará sob risco’.” Desde a decisão, ela afirma que pouco precisou de assistência.
“Vou às vezes no posto, já sabendo que é preciso chegar cedo para garantir a vaga.”
Cláudia integra um grupo de cerca de 3 milhões de pessoas que migraram da saúde suplementar para a assistência exclusiva no SUS.
Sistema criado há 30 anos e que, embora ainda desperte a desconfiança de boa parte da população, é apontado por especialistas como o principal responsável pela melhora nos indicadores do País.
“Não há dúvida sobre o impacto positivo do SUS para a população” diz o professor da Universidade Federal de Pelotas, Cesar Victora.
“Mas o sistema, que já era subfinanciado, agora é ameaçado com a pressão para reduzir seu tamanho e dar prioridade a planos privados de saúde, muitos de baixa qualidade”, avalia.
Professor da Universidade Estadual de Campinas, Gastão Wagner tem avaliação semelhante.
Ele afirma haver inúmeras evidências de que sistemas públicos e universais de saúde são mais eficientes do que modelos de mercado.
Como exemplo, faz uma comparação de números da saúde nos Estados Unidos e no Reino Unido, que é universal.
A saúde norte-americana tem um gasto equivalente a 16,4% do PIB.
A do Reino Unido, por sua vez, de 7 11%. “E indicadores de saúde são equivalentes, com ligeira vantagem para o Reino Unido”, completa Wagner
Além do financiamento, Victora e Wagner listam dois grandes desafios para o SUS: garantir a qualidade de atendimento e resguardar as conquistas obtidas pelo sistema.
Os números recentes mostram que essa última tarefa é urgente.
A mortalidade infantil voltou a subir, depois de anos de queda. “A experiência internacional mostra que são raríssimos os casos em que tais retomadas ocorrem.
A tendência é de que mesmo em situação de crise, as taxas de mortalidade, permaneçam estáveis” afirma o professor de epidemiologia da Universidade Federal da Bahia Naomar de Almeida Filho.
“As exceções são raras, como em alguns países da África”, afirma Almeida Filho. Mantida a tendência, completa o professor da Federal da Bahia, a expectativa de vida do brasileiro poderá diminuir.
A aumento da mortalidade de crianças surpreendeu especialistas e ocorre pouco depois da divulgação de dados que indicavam uma melhora nos indicadores até 2015.
Um estudo coordenador por Maria de Fátima Marinho de Souza, que está à frente do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis do Ministério da Saúde, mostra o avanço dos indicadores de saúde no País entre 1990 e 2015.
A taxa de mortalidade havia sofrido uma redução de 28,7%. Neste período, a taxa de mortalidade por diarreia havia caído 86,8% e de meningite, em 70,7%.
Ao mesmo tempo, a expectativa de vida ao nascer passou de 67,9 anos para 74,4 anos.
O retrocesso também está estampado nas estatísticas de malária. Depois de seis anos de queda, a infecção voltou a aumentar no ano passado.
“Quando a doença começa a cair, a atenção se dispersa”, afirma Cláudio Maierovitch, da Fundação Oswaldo Cruz.
O retrocesso, avalia, tem um efeito perverso, que é a perda de mobilização. “Retomar os ganhos é sempre mais difícil do que avançar na primeira vez.”
Cláudia diz torcer pela melhora no sistema e não cogita voltar mais para os planos privados. “Minha mãe também se trata no SUS.
Pode ser demorado, mas quando a gente consegue o tratamento, ele é de boa qualidade.”
Como exemplo, ela cita uma cirurgia que fez durante o tratamento de câncer. “Uma das operações foi feita pelo SUS.
Não ficou nada a dever aos hospitais privados. O atendimento é nosso direito.
Talvez seja melhor, em vez de recorrer ao plano, cobrar bom atendimento, lutar pelo SUS.”
Demora
O desafio da qualidade fica claro com o relato da estudante Karolini da Luz Oliveira, de 24 anos.
Sentada à espera de atendimento na Casa de Saúde de Santa Maria (RS), ela não escondia o cansaço.
Estava em meados de junho e, só então, três meses depois da primeira visita ao médico, seu problema começava a ser solucionado.
“Foram sete consultas, um socorro com ambulância, um desmaio, internação.”
Karolini estava com toxoplasmose, doença provocada por um parasita que causou na cidade gaúcha um surto de proporções nunca vista.
Na primeira visita ao centro médico, em março, o diagnóstico foi virose.
Dias depois, como o problema não se resolvia, a estudante voltou ao posto, mas o sistema estava fora do ar.
Em outra visita, já com nódulos, fez uma radiografia.
Após desmaiar e ser internada, recebeu soro. Só na sexta consulta veio a hipótese da toxoplasmose, confirmada no exame.
“Fico pensando quanto desgaste, quanto desperdício.”
Wagner reconhece haver limitações do SUS, mas argumenta que o sistema ainda não foi totalmente implementado, não recebe recursos suficientes e não tem apoio político.
“O primeiro passo é fazer com que o SUS ganhe corações e mentes: 75% da população depende exclusivamente dele, além de realizar serviços para toda sociedade.” / L.F.
Mortalidade infantil
A trajetória da taxa de mortalidade infantil no País é apontada como um claro exemplo de que os progressos alcançados na área de saúde estão longe de serem irreversíveis.
Depois de 25 anos de queda, o Brasil registrou em 2016 o primeiro aumento nos indicadores de mortes entre crianças de até um ano.
Foram 14 óbitos a cada mil nascidos vivos, 5% a mais do que havia sido contabilizado no ano anterior.
Inicialmente atribuído à redução de nascimentos por causa da zika, o crescimento da mortalidade também ocorreu em 2017.
Dados preliminares mostram que 13,6 mortes a cada mil nascidos vivos. “A epidemia não explica o fenômeno por dois anos seguidos.
Há provavelmente uma tendência de aumento”, constata o professor da Universidade Federal de Pelotas, Cesar Victora.
Pobre
O pesquisador atribui em parte a retomada das taxas de mortalidade a retrocessos em áreas que sabidamente exercem influência na qualidade saúde, como emprego, renda e igualdade no acesso.
“A população está mais pobre, mais suscetível”, resume o professor.
Não bastasse esses fatores, investimentos na saúde pública inferiores às necessidades comprometem também a qualidade da assistência médica.
Mesmo de programas voltados para problemas específicos, seja imunização, seja amamentação, seja cuidados básicos para saúde infantil.
“As mortes por diarreia voltaram a aumentar. O programa de imunização, que sempre foi motivo de orgulho, também começou a mostrar sinais de retrocesso, com altos índices de crianças desprotegidas.”
Outra iniciativa considerada exemplar do País, o programa de aleitamento materno, também está estagnado. “Houve avanços muito importantes.
Mas desde 2013, as taxas de amamentação exclusiva estão estacionadas em números baixos.”
Atualmente, 40% dos bebês recebem o aleitamento como alimentação exclusiva até os 6 meses.
O ideal seria 100%. Com aleitamento, o bebê cresce com maior proteção contra infecções, por exemplo.
Para Victora, é essencial trabalhar pela melhora na qualidade do atendimento.
“Esse é um dos desafios.” E isso vale também para a assistência à gestante.
Assim como a mortalidade infantil, a taxa de morte materna (durante a gestação e até 42 dias depois do parto) também considerada alta: 64,4 por 100 mil nascidos vivos.
“Para reduzi-las, precisamos enfrentar a discussão sobre a liberação do aborto, melhorar o pré-natal e reduzir as cesáreas”.
Fonte: EXAME – 04.09.2018