UNIÃO PELA SAÚDE
31/01/2019
Responsável por, pelo menos, 40% das cirurgias e internações feitas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a rede de 2,1 mil Santas Casas e hospitais filantrópicos está enredada numa situação tão crítica que ameaça abalar – pelos números envolvidos – o próprio funcionamento do sistema nacional de saúde pública que, aliás, já presta atendimento de precária qualidade à população carente que dele necessita. Reportagens, que pipocam na mídia, estimam que a dívida de tais organizações com funcionários, fornecedores, bancos e órgãos públicos é de, no mínimo, R$ 17 bilhões. Na linha do tempo, os débitos que somavam R$ 1,8 bilhão em 2005 cresceram seis vezes nos últimos dez anos.
Os danos da crise já se fazem sentir e tendem a se agravar, caso não sejam adotadas medidas imediatas e também de médio e longo prazo, para evitar a recorrência dos problemas. Com 1.500 atendimentos urgentes diários; 2.000 cirurgias/mês; 3.500 internações/mês, a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo passa por processo de reestruturação e revitalização para se adequar aos recursos oficiais que lhe são repassados. A de Belo Horizonte foi fechada em abril. Em Criciúma, o Hospital São José, um dos maiores de Santa Catarina, desde o final do ano passado só atende emergências. Segundo dados da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), essa é apenas a ponta o icerberg, pois, dos seus 2,1 mil associados, 1,7 mil registram déficit.
Embora admitam que possam existir fatores como má gestão, aqueles que se debruçam sobre a questão dos hospitais filantrópicos são unânimes em apontar a defasagem e os atrasos nos repasses do SUS como a causa principal da crise generalizada. A tabela do SUS fixa valores 40% abaixo do custo real dos procedimentos listados. Resultado, ainda segundo a CMB: isso gera um déficit de mais de R$ 5 bilhões por ano, agravado pelos atrasos nos repasses que leva aos empréstimos bancários – ainda que eles tenham origem defasagens e outras falhas do SUS. “Aí, vira uma bola de neve”, lamenta Edson Rogatti, presidente da CMB.
Mesmo que haja discordâncias em alguns aspectos, as consequências do agravamento da crise não podem deixar de preocupar, principalmente porque os maiores prejudicados serão os milhões de brasileiros carentes, sem recursos para procurar atendimento particular ou bancar planos de saúde. Certamente, na legião de voluntários que doam tempo e saberes para as instituições filantrópicas, devem existir algumas centenas de profissionais das mais variadas áreas que podem oferecer uma apreciável contribuição para eliminar esse gargalo que pode evitar um colapso no sistema público de saúde. Essa é mais uma das políticas públicas que está a pedir uma profunda revisão e adequação a conceitos modernos de filantropia, dentro das normas que a Constituição Federal estabelece para definir e dar o norte da assistência social, considerada um conjunto de ações a serem protagonizadas pelo poder público e pela sociedade, para oferecer serviços gratuitos a quem deles necessitar em várias áreas, entre as quais se inclui a saúde.
Direito do cidadão e dever de Estado, a saúde no Brasil há décadas padece com sérios problemas, como insuficiência de leitos, longos atrasos na marcação de consultas ambulatoriais e de cirurgias, desmotivação e baixa qualificação dos profissionais da área, desperdício de medicamentos e outros materiais, construção de hospitais que se arrastam durante anos, e por aí vai. Esse cenário, que pode caminhar para o descalabro, aponta para a urgência de se deixar para trás a etapa de soluções pontuais – como reajustes insuficientes na tabela do SUS, perdão de dívidas e outras providências que são benéficas, mas não atacam a raiz dos problemas.
Agora, é o momento de se partir para a fase de um amplo debate público e de construção de uma nova política pública de saúde, que assegure à rede nacional de atendimento as condições indispensáveis para oferecer tratamento mais condigno aos pacientes que a ela recorrem. Não será um processo fácil, pois implica deixar de lado ideias pré-concebidas, preconceitos, antigos comportamentos que levam a distorções e a toda série de entraves que retardarão a necessária articulação entre governo e sociedade para retirar a saúde pública do grande elenco das desigualdades que tanto envergonham os brasileiros responsáveis e com consciência cidadã.
* Ruy Martins Altenfelder Silva é Presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ).
Fonte: Jornal O Imparcial