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EM CINCO ANOS, DOENÇAS POR FALTA DE SANEAMENTO CUSTAM R$ 1 BI AO SUS
17/10/2019

ANANINDEUA (PA) - A pergunta que Áurea Sarmento, enfermeira em uma unidade básica de saúde de Ananindeua (PA), mais ouve de seus pacientes é: “Será que é verme?”

Com menos de 1% de atendimento por rede de esgoto e só 30% da população com acesso à água tratada, a cidade na região metropolitana de Belém sofre com doenças facilmente evitáveis, o que faz com que a suspeita dos pacientes acabe confirmada com frequência em exames. A situação não raramente se repete em outros lugares do Brasil.

Invisíveis em grande parte das estatísticas, doenças ligadas ao saneamento inadequado ainda são um dos principais pontos de sobrecarga do SUS. Juntas, levam o sistema a gastar ao menos R$ 217 milhões por ano em internações e procedimentos ambulatoriais.

Só nos últimos cinco anos, foram mais de R$ 1 bilhão despendidos por esse motivo.

Os dados são de levantamento feito pelo Ministério da Saúde a pedido da Folha, o qual engloba registros de ao menos 27 doenças em que problemas no saneamento aparecem como fator importante para sua transmissão ou manutenção no país.

Entram na lista diarreias e doenças causadas pela ingestão de água e alimentos contaminados, como amebíase, esquistossomose e hepatite A, ou ligadas às condições do local, como a dengue.

“São doenças evitáveis, negligenciadas e relacionadas às condições de vida que envolvem o saneamento” diz André Monteiro Costa, da Fiocruz de Pernambuco, que integrou grupo que elaborou nova classificação dessas doenças para a Funasa em 2010.

“As diarreias estão muito relacionadas à higiene e ao acesso à água, enquanto doenças transmitidas por insetos às condições de moradia, abastecimento de água e pobreza.”

Para ele, o valor é subestimado. Representantes do Ministério da Saúde também admitem que o gasto real tende a ser muito maior, já que nem todas essas doenças são de notificação obrigatória, e volume expressivo dos atendimentos é concentrado em unidades básicas de saúde, sem que haja registros dos dados.

Os números já indicam parte do impacto: só em 2018, foram ao menos 487 mil internações por esse motivo, ou mais de 1.300 por dia, e 533 mil procedimentos ambulatoriais.

Para Leandro Giatti, da Faculdade de Saúde Pública da USP, a baixa notificação de algumas doenças, em especial diarreia, escamoteia a situação de parte expressiva da população que tem o problema.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) aponta que 94% dos casos de diarreia no mundo ocorrem devido à falta de acesso à água de qualidade e ao saneamento precário. Hoje, a diarreia é a segunda causa de morte em crianças menores de cinco anos no mundo.

A mesma organização estima que, a cada US$ 1 investido em saneamento, US$ 4,3 são economizados em saúde. Dados de estudos recentes reforçam essa associação.

SANEAMENTO X DOENÇAS

Pesquisa da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária em 1.868 municípios aponta que quanto maior o acesso da cidade ao saneamento, menor a incidência de internações por diarreia, infecções intestinais e outras doenças.

“É muito claro: onde há bons indicadores de saneamento, há menos doenças. Um exemplo é Franca, em São Paulo. Lá, a incidência de internações é de dez casos. Já em Ananindeua, é de 18 vezes mais”, diz o presidente da associação, Roberval Tavares de Souza.

A situação afeta a rotina de postos de saúde. Perto da unidade onde Áurea trabalha, boa parte da população ainda retira água de poços precários. Na tentativa de minimizar os danos, a equipe orienta sobre o consumo de água segura e o uso de hipoclorito de sódio para a desinfecção da água. 

Mas o problema vai além. 

“Nas visitas domiciliares, é doloroso entrar e ver a ausência de condições. Muitos também não têm acesso à boa alimentação”, diz Sarmento, que vê reflexos nos exames.

“Ainda aparecem muitos casos de diarreia e verminoses.” Entre elas, uma das mais frequentes é a giardíase, infecção no intestino delgado que ocorre quando a pessoa ingere cistos de um protozoário em alimentos contaminados por fezes e água sem tratamento.

Outro desafio é ampliar o acesso à informação. “Tem pessoas que bebem água da bica e dizem que é mineral. Mas quando peço exame de fezes, têm uma quantidade de verminoses absurda”, conta a enfermeira Laurilene Pinto, que trabalha em uma unidade de saúde na periferia de Belém.

Nem sempre a relação com a falta de saneamento é percebida pela população.

“Minha filha começou a passar mal e a ter dor de barriga. Também emagreceu muito. Foi aí que no exame deu que era princípio de ‘barriga d’água’”, relata a dona de casa Samara Santos, 29, que vive com a filha de 13 anos no bairro Terra Firme, em Belém.

A “barriga d’água” é a esquistossomose, doença transmitida por caramujos que liberam larvas na água, comum em áreas com baixo saneamento e incidência de enchentes.

Ela diz ter relacionado o quadro à situação do local onde vive ao receber a visita de agentes de saúde preocupados com o resultado do exame. 

“Perguntaram se ela andava muito descalça e brincava aí na frente”, conta, apontando para uma área com água acumulada a poucos metros do esgoto. “Hoje, minha filha sabe que foi aí que ela pegou.”

Para Monteiro, da Fiocruz, é preciso fazer um alerta: se hoje doenças relacionadas ao saneamento inadequado já geram impacto, há risco da situação se agravar.

“Não vemos nada sendo feito que transforme as condições ambientais e urbanas no saneamento e, com isso, faça ter redução de agravos e internações”, afirma. 

“Vemos o oposto: a vulnerabilidade social está maior, com aumento do desemprego. É um quadro preocupante que pode se agravar com a introdução de novas doenças transmitidas por insetos.”

Ele cita como exemplo a febre do oropouche, que já circula no Brasil, mas ainda está restrita a algumas regiões.

Foi o mesmo que ocorreu nos últimos anos com chikungunya e zika, transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.

Segundo Luciano Pamplona, da Universidade Federal do Ceará, embora ligada a vários outros fatores, essas doenças tendem a registrar mais casos em áreas de saneamento inadequado devido ao acúmulo de água, fator que favorece a reprodução dos mosquitos transmissores.

Assim, se a oferta de água não for suficiente em determinada região (fazendo com que mais pessoas a mantenham em vasos e baldes), ou se houver lixo sem coleta (o que leva ao acúmulo de água), há mais chances de proliferação do vetor.

“A oferta de água deve ser não só em quantidade suficiente, mas também estar onde as pessoas precisam. Um exemplo é que no mesmo ano em que faltou água em São Paulo, 2015, a cidade teve uma epidemia de dengue.”

A ausência de saneamento gera ainda impactos indiretos à saúde. Entre eles, Giatti, da USP, cita a desnutrição e a maior suscetibilidade a outras doenças.

Outro exemplo é a chamada enteropatia ambiental, que surge quando pessoas que vivem em ambientes causadores de sucessivas infecções do trato digestivo têm mudanças fisiológicas que afetam a absorção de nutrientes.

SANEAMENTO NO BRASIL

 

Para Giatti, o cenário de exclusão faz com que haja poucos estudos sobre o tema. “É uma situação negligenciada, pouco estudada, e relegada a grupos de pobres, excluídos e marginalizados.”

Situação semelhante ocorre para a relação entre doenças e saneamento. Embora comprovada, há poucos estudos novos que apontem a dimensão do problema e seu impacto também em outras áreas, como o afastamento no trabalho e a consequente perda de produtividade e renda.

“É como se fosse um problema científico resolvido”, diz Giatti. “Fica por isso mesmo.”

Doenças relacionadas ao saneamento inadequado

O que é
Doenças cuja forma de transmissão, controle e prevenção é relacionada ao ambiente e à ausência ou insuficiência de serviços de saneamento básico, como acesso à rede de água e esgoto

487.726
foi o total de internações por essas doenças em 2018

533.884
foi o total de procedimentos ambulatoriais em hospitais

R$ 216,8 mi/ano
é a média de gastos no SUS com internações por essas doenças nos últimos anos. Valor deve ser maior, pois não considera atendimentos em unidades básicas de saúde, que respondem pela maioria


R$ 192,5 milhões
foi o total de gastos no SUS em 2018*

* Valor gasto com internações teve queda em comparação a últimos anos —o que especialistas atribuem não à melhora no saneamento, mas ao aumento da oferta de equipes de atenção básica no SUS, o que ajuda a evitar agravamento dos casos.


Fonte: Folha de S. Paulo