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Hospital de Câncer de Barretos: onde o amor resiste
10/01/2016

Hospital de Câncer de Barretos: onde o amor resiste

Uma semana na instituição que é uma das maiores obras da generosidade do brasileiro. No ano da descrença, o povo escolheu ser ainda mais solidário

Em anos como 2015, marcados por desmandos políticos e escândalos de corrupção, há quem perca a fé no país. Sempre existem, no entanto, antídotos para tempos de descrença – e o Hospital de Câncer de Barretos, no interior de São Paulo, é um deles. Trata-se de uma ilha de excelência médica com atendimento 100% SUS – e uma das maiores obras da generosidade do brasileiro. Num ano de crise econômica, o povo foi ainda mais solidário. As doações cresceram 10%. Durante uma semana, ÉPOCA viveu o cotidiano e os bastidores dessa bolha onde o amor resiste.

Na manhã do último sábado de novembro, Joaquim Esperidião Almeida Rodrigues, de 7 anos, tinha os olhos colados à tela do gameMortal kombat na brinquedoteca da unidade infantojuvenil. Longe de casa havia três meses, ele fazia planos ambiciosos:

– Amanhã, eu capo o gato.

Com o ditado popular, ele tentava explicar que, logo, logo, iria embora. Joaquim não via a hora de brincar solto pelas ruas de Érico Cardoso, na Bahia. Estava em Barretos por um cruel desvio de rota. Uma leucemia que, depois de ser tratada em Salvador, voltou a se manifestar. O garoto cumpria o sétimo bloco de quimioterapia. Depois da alta, descansaria 21 dias antes de ser submetido à oitava rodada. Se a doença persistisse, seu destino poderia ser a fila do transplante de medula. Enquanto a estratégia de combate à doença era assunto de adulto, Joaquim passava o tempo em luta contra monstrengos eletrônicos que ele podia comandar e, quase sempre, vencer. Sub-Zero, Scorpion, Reptile... um mais feio que o outro. Vibrava a cada fatiamento sem dó.

– Esse corta de faca. Corta de tudo.          

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Os golpes faziam a mãe franzir a testa. Diante da imprevisibilidade do câncer, Katiele, de 27 anos, tinha uma única certeza: a de que o filho não poderia receber tratamento melhor. “Isto aqui é uma maravilha”, dizia. Além do acesso aos melhores recursos e do conforto inimaginável na maioria dos serviços públicos, o que mais encantava aquela mãe era o respeito. O propósito máximo da instituição, que adota o título de “O hospital do amor”, é tratar todos os pacientes da mesma forma. Sem distinção de classe social e com o que a medicina produz de melhor. As disputas financeiras e as contenções de orçamento ocorrem nos bastidores. Não alcançam os pacientes e suas famílias. Os mais de 400 médicos trabalham em período integral, com dedicação exclusiva. Dentro do universo da saúde, Barretos é um mundo paralelo, onde a gentileza e a fraternidade estão no ar.

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Se apenas cumprisse suas obrigações, o atendente da lanchonete Sinomar Rogério Gonçalves, o Mazinho, serviria sanduíches, sucos e frutas com presteza e educação. No hospital, dinheiro não entra. A cada visita ao ambulatório, pacientes e acompanhantes recebem um total de pontos para consumo na lanchonete. A escolha é livre. Alguns gastam tudo em refrigerante. Outros, em frutas que raramente têm em casa. Mazinho faz mais do que seria exigido dele. Quando o movimento diminui, salta da lanchonete para a sala de brinquedos e convida as crianças para cantar e dançar. É o xodó dos pequenos pacientes. De longe e com admiração, o diretor do hospital infantojuvenil, Luiz Fernando Lopes, observa a cena. “Esse cara é iluminado”, diz.

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AMOR

Em 2009, Lopes realizava uma pesquisa importante numa universidade britânica, quando aceitou o convite para trocar Londres por Barretos. Diz que nunca se arrependeu. “Isto aqui não é Brasil”, afirma. “Trabalhar neste hospital ou na Alemanha é a mesma coisa.” O pediatra afirma ter todos os testes, as drogas e os especialistas necessários para fazer pesquisa de alto nível e oferecer o melhor tratamento. A unidade atende cerca de 500 novos casos por ano. A chance de cura é alta, desde que a doença seja detectada nas fases iniciais. Dois anos depois do tratamento, 83% das crianças que tiveram leucemia linfoide aguda e foram atendidas em centros de excelência como Barretos estão vivas. No caso do linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer no sistema linfático, o índice sobe para 93%.

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A facilidade de acesso surpreendeu os pais do bebê Hugo Gabriel Diverno Lopes. Um tumor no abdome havia sido diagnosticado em Franca, no interior de São Paulo. A mãe, Débora, de 24 anos, resolvera tentar uma vaga em Barretos. Após dois dias de conversas telefônicas e envio de exames, a médica respondeu: “Traga seu filho amanhã”. A cirurgia realizada em Barretos foi bem-sucedida. Algumas horas depois da visita de ÉPOCA, Hugo recebeu alta.

ESPERANÇA

A instituição existe por uma conjunção de fatores raros. Nos anos 1980, o fazendeiro Henrique Prata pretendia fechar o Hospital São Judas Tadeu, uma instituição de 70 leitos criada pelos pais (os oncologistas Paulo e Scylla Prata), duas décadas antes. O governo, como de praxe, pagava pouco pelos serviços prestados. Sempre deficitário, o hospital drenava a fortuna da família. Henrique, um habilidoso negociante, resolveu sanear a instituição para fechá-la quanto antes. Ele conta que os planos mudaram quando, numa certa noite, sonhou com um hospital horizontal, composto de vários pavilhões e frequentado por milhares de pessoas.

Religioso, Henrique interpretou o acontecimento como um sinal divino. Fez da causa uma missão. Teve a ideia de pedir doações aos grandes empresários do agronegócio e às celebridades. Cada novo pavilhão construído e equipado receberia o nome do doador. A dupla Chitãozinho & Xororó abriu as portas e os contatos. Desde os anos 1990, muitos outros artistas populares ajudaram a obra a crescer: Leandro & Leonardo, Daniel, Zezé Di Camargo &  Luciano, Sérgio Reis, Bruno & Marrone, Jorge & Mateus, Ivete Sangalo, Alexandre Pires, Xuxa... Em geral, os artistas doam a renda de um show – R$ 300 mil líquidos. Dessa forma, o hospital arrecada cerca de R$ 6 milhões por ano.

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Barretos transformou-se num complexo gigantesco que realiza 1,2 milhão de atendimentos por ano. São 134.000 metros quadrados de área construída em diferentes cidades. Três hospitais no município, um em Jales, no interior de São Paulo, e um em Porto Velho, em Rondônia. Há também sete unidades fixas de prevenção ao câncer em Barretos (SP), Fernandópolis (SP), Jales (SP), Porto Velho (RO), Campo Grande (MS), Nova Andradina (MS) e Juazeiro (BA). Além de 11 unidades móveis – carretas equipadas com mamógrafos. Em 2015, elas realizaram 98 mil exames em 200 municípios.

EXCELÊNCIA

Segundo as demonstrações financeiras da Fundação Pio XII, a mantenedora do hospital, o complexo todo custou R$ 407 milhões em 2014. As receitas somaram R$ 198 milhões. São os pagamentos feitos pelo governo federal por serviços prestados ao Sistema Único de Saúde e outros convênios. O deficit é assustador: R$ 208 milhões. Pouco mais da metade (R$ 116 milhões) é coberta por subvenções de Estados e municípios. Quase o mesmo valor (R$ 114 milhões) é resultado de doações.

É a parte mais surpreendente da história. Do total de doações, R$ 46 milhões são oferecidos por pessoas jurídicas. O restante (R$ 67 milhões) é resultado das mais variadas formas de captação: doações pelo site, leilões, DVDs, livros etc. Só os cofrinhos espalhados em pontos comerciais de todo o país rendem, de centavo em centavo, R$ 1,6 milhão por ano. “O brasileiro anônimo é o nosso maior apoiador”, diz Henrique. “Oitenta por cento do que fizemos até hoje só foi possível graças ao dinheiro do povão.” Trinta e quatro funcionários orientam moradores de centenas de municípios que trabalham como coordenadores voluntários de doação. É um exército não remunerado de 674 colaboradores. Cada cidade se esforça para fazer mais bonito que a vizinha.

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A principal apoiadora, entre os doadores pessoa física, é a fazendeira Eunice Diniz, uma das cinco maiores acionistas do Banco Itaú. Ela doou R$ 8 milhões. Aos 89 anos, viúva e sem filhos, Eunice mora com quatro empregados num apartamento de 380 metros quadrados na capital paulista. “O dinheiro não me faz falta”, diz. O aposentado Pedro Sanches, de 75 anos, de Taiaçu, no interior de São Paulo, demonstra uma generosidade inabalável. Duas vezes por semana, dirige 100 quilômetros para entregar frutas e legumes à cozinha do hospital (40% dos alimentos usados nas 7 mil refeições diárias são provenientes de doação). Quando tinha saúde, pedia permissão para cultivar alimentos nas beiras de cerca e nas curvas de nível dos sítios da região e depois doava a produção ao hospital. “Faço tudo isso por amor”, diz.

Os leilões de gado são outra importante fonte de recursos. A cada ano, os produtores doam 50 mil cabeças ao hospital – um patrimônio que se transforma em R$ 50 milhões. Nesses eventos populares, há quem se levante para doar a aliança de casamento. Ou a única máquina de lavar. Uma galinha. Um ovo. Quem arremata o produto costuma doá-lo novamente. Dois rolos de papel higiênico, doados na cidade de Santa Clara d’Oeste, no interior paulista, foram arrematados por R$ 1.520. O entusiasmo chega a ser maior que o saldo bancário. Durante a visita de ÉPOCA, um funcionário tentava receber R$ 2 milhões doados por diversos contribuintes com cheques sem fundos. Na maioria dos casos, o crédito não acontece por erro de assinatura. “O povo bebe demais nesses leilões”, diz o gerente de captação de recursos Luiz Antonio Zardini. “Em vez de assinar João, assina Joaquim.”

Barretos é um exemplo único no Brasil. “Aquele hospital conseguiu fazer um mix muito bem-sucedido: tem uma estrutura competente de arrecadação, bons resultados clínicos, cultura organizacional, credibilidade da população e uma forma competente de gestão financeira”, diz a professora Ana Maria Malik, coordenadora do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Fundação Getulio Vargas. “As pessoas que trabalham lá realmente acreditam na causa.” Esse comprometimento é construído diariamente.

Quando completam um ano de casa, todos os funcionários são convidados a celebrar. O “Café com o Henrique” é um acontecimento. O chefe chega trajando o figurino de todos os dias: calça jeans, botas de couro texano com pespontos que parecem um bordado, camisa branca, paletó bem cortado (da grife Burberry, de Londres). A intenção dele é checar se a cultura do hospital foi bem assimilada. “Tratar por amor é um exercício de humildade para todos nós”, afirma. “Cada um neste projeto tem tanto valor quanto um remédio. Não achem que o importante é o remédio. Importantes são vocês.” A reunião termina com o pai-nosso.

Por mais que o diretor acredite em milagres, a mão de Deus não se manifesta facilmente no balanço financeiro. Todo ano, o hospital fecha com um deficit, que Henrique se esforça para cobrir. Calça os botinões de couro, entra no jatinho ou no teco-teco que ele mesmo pilota e aterrissa nos gabinetes dos deputados de Brasília. Ou chora miséria nas secretarias de Saúde. É um estilo de administração temerário. Primeiro ele gasta. Depois, corre atrás. “Tudo o que ele faz é muito bem feito, mas, financeiramente, o hospital é vulnerável”, afirma o secretário estadual de Saúde de São Paulo, David Uip. “Não gosto do tom messiânico. Amor todo mundo tem. Arrumar dinheiro é mais complicado.” Os desafetos de Henrique apontam outros defeitos. Dizem que ele é vaidoso, centralizador, autoritário. Apesar das críticas, no hospital o saldo do chefe segue positivo. É voz corrente que ele “acerta no atacado e erra no varejo”.

A boa fama de Barretos atrai desassistidos do país todo. No hospital adulto, a espera pelo início do tratamento costuma variar entre 30 e 60 dias. A paraense Gilvania dos Santos Rodrigues, de 25 anos, veio de Breu Branco, a 400 quilômetros de Belém, para combater um linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer no sistema linfático. No Pará, o resultado de uma biópsia demoraria até 60 dias para sair. A mãe, Evandir, largou o trabalho e os outros filhos e embarcou com a filha no tudo ou nada que a vida impôs. Bateram às portas de Barretos, mesmo sem ter encaminhamento.

ABRIGO

Há dois anos e três meses, elas moram no alojamento de 116 quartos, oferecido gratuitamente pelo hospital. Dividem a casa com 300 pessoas, todas vindas de longe. É um Big Brother involuntário, no qual saber conviver é questão de sobrevivência. Gilvania sente saudade da casa confortável em que morava, mas diz que soube se adaptar. “Na terra de sapo, de cócoras com ele.” Ao final da terceira fase de quimioterapia, ela aguardava um transplante autólogo (feito com células de sua própria medula). Sem o abrigo gratuito, a família não teria como se manter em Barretos.

Apesar de todos os esforços e recursos disponíveis, nem sempre é possível vencer o câncer. Dizem que as pessoas não escolhem trabalhar com pacientes com chances escassas de cura. Por alguma razão, são escolhidas. A vocação da geriatra Heloisa Scapulatempo e da gerente de enfermagem Veronica Faustino se manifesta nos detalhes. A essência do trabalho delas na unidade de cuidados paliativos é o acolhimento. Heloisa acolhe com o sorriso. Veronica, com os olhos. “O que esses pacientes têm de especial é a urgência da vida”, diz Heloisa.

PAZ

Além de controlar a dor e oferecer conforto, a equipe se desdobra para realizar desejos. Casamentos, reencontros familiares, solução de pendências... Os profissionais fazem o possível para que os pacientes e familiares fiquem em paz. “Vocês são uns anjos que vieram do céu ajudar a gente”, diz um dos acompanhantes ao avistar Veronica. Ela engole o choro e entra no quarto da professora de línguas Maria Betania Gandia. Aos 47 anos, com câncer no cérebro, ela aguardava a visita do filho de 10 anos. Heloisa e Veronica se aproximam. A paciente se anima. Quanta comunicação naquele silencioso olho no olho. Sonolenta, Maria Betania trafega naquele vão entre consciência e inconsciência no qual o sentimento suplanta o raciocínio. Palavras para quê?

  

Fonte: CRISTIANE SEGATTO (TEXTO) E FILIPE REDONDO (FOTOS) - Revista Época

10/01/2016 - 10h05 - Atualizado 10/01/2016 12h27

http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/01/hospital-de-cancer-de-barretos-onde-o-amor-resiste.html

 


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