Alvo de protestos, coordenador de saúde mental diz ser contra manicômios!
03/03/2016
NATÁLIA CANCIAN
DE BRASÍLIA
03/03/2016 02h00
Não raro, o psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho encontra manifestantes com cartazes que pedem sua saída do Ministério da Saúde. A situação virou rotina desde o fim de dezembro, quando o ex-diretor do manicômio Casa de Saúde Dr. Eiras (RJ), apelidado no passado de "casa dos horrores", foi nomeado como titular da Coordenação Nacional de Saúde Mental pelo seu ex-orientador na faculdade e atual ministro da Saúde, Marcelo Castro.
Desde então, protestos se espalham pelo país. Militantes do movimento antimanicomial também ocupam uma sala do Ministério da Saúde há 81 dias. "Fizeram uma interpretação errada do meu norte", afirma ele.
Duarte Filho diz que pretende investir na realocação de pessoas que ainda vivem em hospitais psiquiátricos no país –hoje, 25 mil. Neste ano, seriam retirados 10% desses pacientes. Leia abaixo sua entrevista à Folha.
Folha - Como o sr. vê os protestos pela sua nomeação?
Valencius Wurch Duarte Filho - Tenho visto isso primeiro de forma positiva, porque traz de volta a discussão da saúde mental no Brasil. Há um pouco de excesso. Ocupar um espaço público por mais de 70 dias é um excesso.
O ministro já falou que pretende que o sr. faça uma revisão do modelo atual da reforma psiquiátrica.
Quando ele fala em reavaliar, é reavaliar resultados. Ver onde estão acontecendo entraves, e corrigi-los. Não é mudar nada, é aperfeiçoar.
Ainda assim, os movimentos têm bastante receio de mudanças.
Vou responder com o meu trabalho. Em 53 dias no cargo, abri 142 pontos de atenção psicossocial no Brasil. Dá quase três por dia. As pessoas acham que eu vou fechar, mas estou abrindo. O programa De Volta para Casa [que oferta um benefício mensal e implementa residências terapêuticas para pessoas que hoje vivem em hospitais psiquiátricos] vai crescer mais.
Fizeram uma interpretação completamente errada do meu norte. Existe uma preocupação com possíveis mudanças na política de saúde mental. É uma preocupação totalmente fora de propósito. Em todos os lugares que já fui, disse que o mote da reforma psiquiátrica, que diz "nenhum passo atrás, manicômio nunca mais" é o meu.
Um dos motivos dos protestos é que o sr. já disse em entrevistas que achava que a reforma psiquiátrica era uma mudança de caráter ideológico e não técnico, e por isso era contrário. O que fez o sr mudar de posição?
A história não é exatamente assim. Em 1995 nós discutíamos um projeto de lei do deputado Paulo Delgado [sobre a reforma psiquiátrica], que dizia que a assistência psiquiátrica no país se dava somente nos hospitais e que a solução para isso seria fechá-los. Eu me coloquei contra essa solução sem uma alternativa. Foi aí que a discussão passou a ser técnica, e não política. O projeto [Lei 10.216/2001, conhecida como reforma psiquiátrica] trouxe uma luz no fim do túnel. Não posso ser contrário à lei se participei da redação.
Como o sr vê a reforma psiquiátrica no Brasil depois de 15 anos?
Havia um volume financeiro quase todo gasto com internação hospitalar. As pessoas adoeciam e eram encaminhadas para setores hospitalares. Com a reforma, você joga os custos da assistência intramuros na mesma proporção para o atendimento extra-hospitalar. A Lei 10.216 é baseada na carta de direitos humanos da ONU. Quem pode ser contra isso?
O sr. foi diretor da Casa Dr. Eiras entre 1993 e 1998, que foi denunciada em 2000 por violações a direitos humanos e chamada de "casa dos horrores". Sabia do que ocorria por lá?
Nesse período eu não estava mais lá.
Mas os relatos são de que os problemas já vinham ocorrendo, não eram apenas daquele período.
Em 1990 houve uma denúncia de maus-tratos. Isso causou comoção. Dez anos antes, apontavam os mesmos problemas que em 2000 foram apontados. Em 1991, a direção da instituição resolveu fazer uma mudança no modelo de atendimento. Eu fui uma das pessoas chamadas para mudar esse modelo. Fui diretor de 1993 a 1998. O ministério mensalmente mandava uma equipe de supervisão para constatar as condições de atendimento. Enquanto estava lá, mês a mês o relatório apontava melhoras. O que aconteceu da minha saída até a denúncia não posso te dizer.
O que eu fiz foi muito. Cheguei e tinham 2.300. Quando saí, tinha 1.500. Quando cheguei, as pessoas entravam e não saíam. Eu dava 15% de alta por mês. O problema é que eu dava 15% de altas por mês e 10% voltavam por que não tinham onde ficar. Depois, não tive mais contato com a instituição. Só fui trabalhar para a melhoria do atendimento enquanto não havia a possibilidade de saída dessas pessoas. Em 2005 eu retornei a Paracambi como coordenador de saúde mental do município, e participei do trabalho de desospitalização daquelas pessoas.
Por que houve essa demora até 2005?
O trabalho não foi iniciado em 2005. Em 2005, eu voltei. Mas nesse período é quando o ministério criou as equipes de desinstitucionalização. Esse processo é complexo e longo. No Brasil ainda existem vários núcleos, e uma das minhas metas é aprofundar esse projeto. Retirar essas pessoas que ainda são muitas e que estão nos hospitais psiquiátricos brasileiros. São 25 mil. Em 163 hospitais com características asilares, porque há outras instituições que não têm essa característica.
A ideia é ir retirando gradativamente essas pessoas. Neste ano, vamos retirar pelo menos 10% delas. Os municípios alegam falta de estrutura, resistência da comunidade e falta de equipamento técnico. Temos técnicos treinando as pessoas para atuar nesse projeto. Estive em Sorocaba (SP) e garanti recursos suficientes para que a gente consiga isso até dezembro. Lá, em três anos foram tirados 900 pacientes. Tenho que tirar outros 1.300 em dez meses.
Há outras metas?
Precisamos aumentar a atuação na atenção básica. Entrar definitivamente em um projeto de atendimento de urgência. Essa é uma queixa frequente dos familiares. Quando precisa de um atendimento rápido, ele não encontra. Vamos precisar juntar isso ao Samu, treinando as equipes para fazer atendimento em situações de crise. O Samu não sabe o que fazer e chama a polícia, o Corpo de Bombeiros.
Existe um debate em relação à redução do número de leitos psiquiátricos com a reforma. Como vê essa questão?
Não se pode abrir mão de mais leitos, mas nos hospitais gerais. Hoje temos mil leitos nestes locais. A ideia é tê-los como retaguarda. Ele não é a primeira opção de tratamento, mas é uma opção. Não existe nenhum país do mundo que não tenha leito psiquiátrico. Negar a possibilidade do leito é negar um pedaço da ciência. Já os leitos com característica asilar não tem sentido. Tem que acabar.
Quais seus projetos em relação ao tratamento de usuários de drogas?
Cerca de 93% das pessoas que usam uma substância química e morrem em consequência dela é pelo álcool. A questão da droga é universal. Há uma série de modelos terapêuticos. Temos um projeto que estamos fazendo de prevenção que é uma cópia de três modelos e fizemos uma adaptação para o Brasil. Uma vertente é fazer política de redução de danos. Outra é tratar a pessoa.
Existe um problema em relação à droga que é a judicialização. O juiz determina que a pessoa tem que ser tratada em tal lugar, mas a pessoa não quer. Sou de uma época em que as comunidades terapêuticas eram moda. O adolescente que o pai suspeitava que ia fumar maconha, o pai dizia: "vou te internar numa comunidade terapêutica". Isso desapareceu nos anos 1970. Hoje em dia tem uma série de entidades que fazem acolhimento de usuários de álcool e outras drogas e deram o título de comunidade terapêutica.
Hoje muitas dessas comunidades têm sido alvo de denúncias, sendo chamadas de manicômios modernos. Enquanto outros acreditam que é um modelo eficaz. O Ministério da Justiça já passou a regular. Na Saúde, pretendem tomar alguma medida?
Até hoje o Ministério da Saúde não participou disso, mas acho que não podemos nos negar a discutir. Precisamos discutir isso e outros modelos de tratamento. E o leito psiquiátrico no hospital geral como retaguarda-base dos Caps [centro de atenção psicossocial]. Não posso querer que o Caps AD [álcool e drogas] dê conta de tudo se o indivíduo sente falta da droga e entra em abstinência. Ele tem que estar vinculado a um leito em um hospital geral, que tem muito mais recursos.
Os protestos continuam. Pretende tomar uma medida para reforçar o diálogo?
Tenho feito isso. Só não posso conversar com quem não quer conversar.
Folha de São Paulo